No dia 30 de abril de 2017, ecoava pelos periódicos a morte do cantor cearense Belchior, aos 70 anos, em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul.Na casa com sua companheira Edna Prometeu, segundo a investigação da época, Antônio Carlos Belchior morreu durante o sono, por causas naturais e ouvindo música clássica.
Posteriormente, foi descoberto um aneurisma na aorta, que levou o sangue do músico a seguir um falso trajeto entre as artérias. Com dezoito discos lançados, apesar de seu sumiço latente em seus últimos anos de vida, o músico, que tinha muita poesia em sua corrente sanguínea, não desapareceu do imaginário e dos ouvidos daqueles que com ele conviveram. Entre uma série de homenagens prestadas à época, mas que seguem perdurando oito anos após a sua morte, o Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE) anunciou, no dia 24 de abril, a condecoração de Belchior com a Medalha do Mérito Artístico e Cultural Patativa do Assaré.
Para além daqueles que vivenciaram na pele o Movimento do Pessoal do Ceará e testemunharam o temperamento característico do sobralense, a vida e a obra de Belchior seguem sendo fio condutor para uma nova geração de artistas cearenses.
Rememorando os oito anos da morte de quem melhor cantou uma trajetória de suor, Ceará e América Latina, confira depoimentos de familiares, parceiros musicais, amigos e daqueles que foram inspirados pelo legado de Belchior.
Confira depoimentos exclusivos sobre a vida, a obra e os momentos compartilhados com Belchior
- Edmar Gonçalves (cantor, compositor e artista plástico)
Quando Belchior visitou meu ateliê, levado pelo meu irmão Mano Alencar, foi muito emocionante pra mim. Ele sempre foi uma das minhas referências. Ele gostou muito dos meus quadros, principalmente da fase dos “Guerreiros do Arco-Íris”, do qual ele me encomendou um trabalho.
Quando fui entregar o quadro, depois de um mês, falei pra ele que estava gravando meu primeiro disco, chamado “Aprendiz”.
E convidei ele pra participar. Ele aceitou de imediato. O que me chamou a atenção foi sua humildade e simplicidade, pois eu era um artista iniciante. Ele foi muito generoso.
Ele perguntou se a música era minha e eu lhe disse que não, que era dele. Ele ficou muito feliz.
Mais feliz ainda quando lhe disse que era a música “Brasileiramente Linda”.
E assim foi feito.
Nessa gravação, participam nos vocais os artistas amigos e queridos Katia Freitas, Aparecida Silvino e Marcos Café.
Indicação de música do Belchior: “Brasileiramente Linda”
- Alberto Perdigão (jornalista, escritor e autor de “Belchior: a construção de um mito na literatura de cordel”)
Conheci o Belchior, eu adolescente, na segunda metade dos anos 1970, ouvindo “Alucinação” e “Coração Selvagem” na radiola portátil, até furar.
Adulto, nos anos 1980 e 1990, estive esporadicamente com ele, eu como jornalista de televisão, entrevistador.
E vim reencontrá-lo, na literatura de cordel, há alguns meses, numa pesquisa em que analiso 20 folhetos que o biografam. Pouca gente conhece o Belchior pela perspectiva dos poetas-repórteres.
Diferente do que narram os livros, nos folhetos Belchior é absolvido do sumiço, é santificado na morte e, então, eternizado num céu que é próprio da literatura de cordel. Outras diferenças e aproximações entre os dois Belchior estão no meu novo livro “Belchior: a construção de um mito na literatura de cordel”. Gosto muito de “Pequeno perfil de um cidadão comum”, de 1978, uma canção que fala de um Belchior misto de poeta e cronista do tempo, da contemporaneidade e do lugar cidade grande, o “filósofo” da vida e da morte do preto, do pobre, do estudante e das pessoas cinzas normais.
- Indicação de música do Belchior: “Pequeno perfil de um cidadão comum”Josely Teixeira Carlos (professora, com doutorado sobre Belchior pela USP-Sorbonne)
Era um sábado típico, início dos anos 2000, quando o telefone tocou cedo.
Do outro lado da linha, a voz inconfundível: “Josy, estou na cidade maravilhosa!”
Era assim que Belchior anunciava sua chegada. Respondi, apressadamente: “Bel, estou indo para a rádio!”
Eu era assistente de produção na Universitária FM da UFC.
Horas depois, enquanto encerrava minhas atividades, vi entrar no estúdio o irreverente Falcão, seguido por Belchior: “Josy, vim te buscar pro show em Crateús.”
Na mesma noite, um grande evento seria realizado na cidade do interior cearense, na inauguração da Casa de Arte e Cultura de Crateús, fundada por Belchior e capitaneada pelo prefeito Paulo Nazareno.
Argumentei, surpresa: “Bel, eu não tenho como ir assim. Não tenho nada comigo, só a roupa do corpo!”
Mas Bel, com seu jeito firme e afetuoso, rebateu: “Não tem problema, a gente compra o que você precisar no caminho”.
Ao sair da rádio, sem decidir o que eu faria, vi uma van já nos esperando. Dentro, Ednardo, Amelinha, Tota (artista plástico), amigos e familiares.
Subi, ainda incrédula. A estrada até Crateús pareceu modificar o tempo.
Naquela viagem, que deve ter durado algumas horas, para mim teve quase a duração de uma vida toda.
O cenário repleto de artistas sentados naquelas poltronas. E eu ali, bem do lado de Belchior, ouvindo bem de perto as histórias dele.
Em dado momento, Bel disse baixinho: “Josy, eu fiz uma música para você.”
Ele sorriu e cantou ao meu ouvido: “Quando eu estou sob as luzes/ Não tenho medo de nada/ Musa, deusa, mulher, cantora e bailarina/ A força masculina atrai, não é só ilusão”.
Ri também, claro — “De Primeira Grandeza” foi lançada quando eu tinha seis anos.
Testemunhei naquela noite um encontro memorável de ídolos cearenses: Belchior, Ednardo, Amelinha, Fausto Nilo, Lucinha Menezes.
Sem bagagem, mas com a alma cheia, vivi naquela van um instante eterno com Belchior.
“Tudo o que tenho é meu corpo/ Sou o que tenho e te dou”, como Belchior não nos deixa esquecer.
Indicação de música do Belchior: “De Primeira Grandeza”
- Alan Morais – Pesquisador, colecionador e DJ de vinil, cantor e compositor
A primeira vez que ouvi Belchior foi no radinho da mãe, aos 9 anos de idade. Tocava a que, anos depois, soube chamar-se “Coração Selvagem”, e fui arrebatado pelos “meu-bens” e back vocais da música…
Fui a shows em calouradas e nas grades do Pirata, quando a PI ainda não tinha o calçadão, e ainda atingindo a maioridade. Até que, nas minhas pesquisas, resolvi ter todos os discos, inclusive seus dois primeiros compactos, e os toco sempre pelas noites e bares da cidade.
Tenho Bel em reverência quando DJ e o tenho como referência quando componho
Indicação de música do Belchior: “Conheço meu lugar”
- Alan Mendonça (escritor, compositor e dramaturgo)
Ensino médio, aluno mediano e, nas nuvens, o sonho de ser cantor.
Da Praça Coração de Jesus à Praça José de Alencar, passando pela Praça do Ferreira, ida e volta no corriqueiro caminho da escola…
Depois de semanas juntando algum dinheiro, entrei na Aki Discos, que ficava ao lado do Cine São Luiz.
Daquele muito mundo, pelas regras do pouco dinheiro, só poderia sair com um único disco.
Depois de uma longa dança de ponteiros, entre álbuns e moedas, saí de lá com o “Era uma vez um homem e seu tempo”, disco de Belchior de 1979, e fui pegar o Campus Universitário, sonhando com “tudo outra vez” e guardando a fome para o prato da vitrola. Muitos anos depois, edito com Ricardo Kelmer, pela Editora Radiadora, a 3ª edição do livro “Para Belchior com amor”, onde 23 personas cearenses da palavra tecem textos escorridos das canções do rapaz latino-americano do lado de cá.
Indicação de música do Belchior: “Tudo outra vez”
- ”Nelson Augusto (jornalista)
Tive o primeiro contato pessoal com o Belchior através de sua irmã Ângela, que estudava comigo na Universidade de Fortaleza.
Ela cursava Ciências Sociais e eu, Ciências Contábeis, no segundo semestre de 1976.
Ao vê-la pela primeira vez, imaginei logo que, no mínimo, seria da família. Então, nas conversas, manifestei meu desejo de conhecer pessoalmente o cantautor sobralense.
Ângela foi muito educada e me disse que o Belchior sempre vinha para Fortaleza nas festas de final de ano.
No final de 1976, ano no qual Belchior havia lançado o que, na minha opinião, é o seu melhor álbum, o disco “Alucinação”, e Elis Regina também havia gravado “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida”, tive a oportunidade de bater um papo super agradável com o compositor e tomar um café na residência da sua mãe, dona Dolores, na rua Padre Guerra, na Parquelândia.
Ficamos em contato pelo telefone e, no ano de 1977, quando o Belchior veio fazer show em Fortaleza, no Ginásio Paulo Sarasate — final de semana que também teve Sílvio Brito, As Frenéticas, Erasmo Carlos, A Bolha — assisti, a convite dele, outras apresentações que vieram depois.
Quando do lançamento do álbum “Fotografia”, do cantor e compositor cearense Ricardo Augusto, no Pirata, também teve uma participação especial do Belchior, que foi muito representativa nessa nossa atividade parceira de amizade.
Quando a Rádio Universitária FM foi fundada, em outubro de 1981, sempre que o Belchior vinha para Fortaleza, me avisava para conversarmos sobre suas novidades musicais.
Numa dessas entrevistas, produzi e gravei um programa no qual o menestrel alencarino revelou com detalhes “A Influência dos Beatles na Formação Cultural de Belchior”.
Antes do Belchior partir para o seu exílio artístico, lembro que nosso último encontro foi no saudoso Amici’s, espaço gastronômico, etílico e cultural que ficava no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura.
Lá conversamos um pouco e saboreamos uma Pizza Belchior, a qual estava no cardápio e era recheada com tomates ressecados.
Indicação de música do Belchior: “Comentários à respeito de John”
- Aparecida Silvino (cantora e artista)
Conheci meu amado Belchior em 1989, bem no início da minha carreira!
Ele foi convidado pelo Ricardo Augusto para fazer uma participação no meu primeiro trabalho em disco, o vinil “Vidro&Aço”, que foi lançado em janeiro de 1991!
Pois bem, ele aceitou e veio à Fortaleza! Gravamos no Pró-Audio Studio do Marcílio Mendonça!
Lá no estúdio, eu perguntei se ele lembrava dos meus irmãos. Belchior foi contemporâneo deles na adolescência, quando meu pai, coronel Silvino, foi delegado de Sobral!
Ele disse que lembrava e falou que tinha morado no apartamento do meu irmão Aparício, quando de sua ida pra São Paulo no final da década de 1960!
Aí eu falei:
“Meus irmãos disseram que a irmã mais nova, negra cabeleira, sou eu! Você me confirma?”
E ele carinhosamente respondeu:
“Mas é claro!”
E sorriu fartamente!
Cresci sabendo que aquela “aparecida” do final da canção “Hora do Almoço” sou eu!
Saudades do meu querido Belchior. Um ídolo que eu aprendi a amar desde sempre e que se fez amigo ao gravarmos juntos a canção “Não Leve Flores”.
Momento eterno em minha memória.
Indicação de música de Belchior: “Não Leve Flores”
- Ricardo Guilherme (ator e professor)
Na madrugada do dia 1º de maio de 2017, durante o show de encerramento do Maloca Dragão, canto a inédita (em disco) música “Madalena”, de Belchior e Jorge Mello, da trilha sonora da peça teatral “O Morro do Ouro”, de Eduardo Campos, montagem de 1971, sob a direção de Haroldo Serra.
E conto dois episódios da minha relação com a música de Belchior.
O primeiro se refere ao fato de que fiz parte do elenco dessa encenação de 1973 a 1976.
O segundo se reporta à convivência que tive com o Bel nos bastidores da TV Ceará, Canal 2, em 1970, quando eu integrava a equipe de produção de Porque Hoje é Sábado (dirigido por Gonzaga Vasconcelos), programa que, como o Show do Mercantil (de Augusto Borges), divulgava os então emergentes compositores Fagner, Ednardo, Rodger Rogério e Belchior.O que deixo a ele é:“Belchior:
um canto a palo seco, feito a faca joão-cabralina,
um poeta itabírico-drumoniano, algo antónio-gedeânico
de quem tem pressa de viver Poe-poetando como heterônimas personas do Pessoa, sulamericanamente, brasileiramente nordestinamente.
Belchior: sertanejo metropolitano, cosmopolita das provincianópoles, caetanicamente cinematográfico, cearensemente copacabânico, luizgonzagamente paulicéico, claricemente adonirânico, vanzolinimente perdido na noite, em vão a se procurar pelos vãos da voraz cidade.
”Indicação de música do Belchior: “Madalena”, inédita em sua discografia.
Fonte: O Povo Online