Questão hídrica é a que mais preocupa no Projeto Santa Quitéria

Ao todo, a atividade exigiria cerca de 855 m³ de água (ou 89 carros pipa) por hora. A segunda audiência pública sobre está marcada para esta quinta, 13

A questão hídrica foi um dos maiores pontos de discussão da primeira audiência pública sobre o Projeto Santa Quitéria, conforme fontes ouvidas pelo O POVO. Ao todo, a atividade exigiria cerca de 880 mil litros de água (ou 89 carros pipa) por hora. A segunda audiência está marcada para quinta-feira, 13, às 14 horas, em Itatira.

Com duração de mais de dez horas e adentrando a madrugada desta quarta-feira, 12, o evento, promovido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), discutiu os impactos ambientais da exploração de urânio e fosfato na mina de Itataia.

Conforme Alessander Sales, procurador do Ministério Público Federal (MPF), a região já sofre com falta de água e o projeto vai consumir uma parcela significativa dos reservatórios. Além disso, há um temor em relação à contaminação do urânio, material considerado radioativo.

Para minimizar a escassez hídrica, inclusive, o Governo do Estado se comprometeu a construir uma adutora para bombear água do açude Edson Queiroz, responsável por abastecer o município. A barragem tem capacidade para acumular até 254 milhões de metros cúbicos de água.

Moradora de uma das 156 comunidades que poderão ser impactadas com o empreendimento, Patrícia Gomes, de 32 anos, relata angústia e medo.

“Eu particularmente sou filha daquelas comunidades. Minha herança, minhas memórias, são daquelas comunidades no entorno, assim como também do meu município. E nos vivemos essa ameaça há mais de 40 anos.”

Além disso, questiona sobre como ficará a produção agrícola, o modo de viver e a cultura do local. “Fica a dúvida na comunidade: se fica, o lugar que você lutou para conseguir construir a sua família, é, seu modo de viver e, de uma hora para outra, você vê que não pode mais ficar no lugar. Como é que vai viver? Como é que vai reconstruir?.”

Também destacou que a participação na audiência “é sempre uma luta. Estivemos mais uma vez como símbolo de resistência pelo nosso território, por nossas águas, por nossa saúde, por nossa biodiversidade, né? Sendo contrários, claro, a esse modelo de mineração, a esse modelo de projeto que está sendo imposto a nós”, finaliza.

Por outro lado, o Consórcio Santa Quitéria, formado pela estatal Indústrias Nucleares do Brasil e a Galvani Fertilizantes, ressaltou, em nota, que reconhece a a importância deste momento para o processo de Licenciamento Ambiental, com o objetivo de promover a troca de informações, esclarecer dúvidas e ouvir as contribuições da sociedade.

“Reforçamos que, além das audiências, onde temos a oportunidade de apresentar o projeto, tanto para o público presente, quanto para quem participa virtualmente, mantemos contato constante com a comunidade por meio de uma equipe de relacionamento dedicada e dois escritórios locais (nos municípios de Itatira e Santa Quitéria), permitindo uma comunicação contínua com os moradores da região.”

A audiência é uma das etapas obrigatórias do processo para o aval do Estudo de Impacto Ambiental e do Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) e posterior licenciamento para exploração da mina de Itataia.

Caso haja aprovação, o Consórcio Santa Quitéria, formado pela estatal Indústrias Nucleares do Brasil e a Galvani Fertilizantes, poderia começar as quatro fases da mineração (planejamento, implantação, operação e desativação).

De acordo com o superintendente do Ibama Ceará, Deodato Ramalho, ainda não há nenhuma posição definida e o objetivo da discussão é ouvir todos os interessados.

“Foi um debate intenso. Ninguém pode dizer que não foi uma discussão extremamente aprofundada. [..] Se tudo estiver dentro dos critérios exigidos, o projeto pode obter a licença prévia. Depois disso, há outras etapas com exigências e condicionantes até que seja concedida a licença de instalação e de operação.”

Parecer não comprova viabilidade socioambiental

Durante a audiência, um parecer técnico elaborado por pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC) foi apresentado, destacando falhas e omissões no Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) do empreendimento.

O documento foi dividido em quatro dimensões: impactos na saúde humana, na biodiversidade e nas comunidades locais, além do uso excessivo da água.

Segundo o parecer, elaborado por mais de 20 especialistas de diversas áreas, as lacunas nos estudos ambientais indicam um potencial de impactos de difícil controle, que podem violar a legislação ambiental brasileira. Entre os principais problemas identificados, destacam-se:

  • Falhas na análise da qualidade do ar e possíveis impactos na saúde da população
  • Inconsistências no diagnóstico dos impactos sobre os recursos hídricos da região
  • Omissões sobre os efeitos do empreendimento na fauna e flora local
  • Falta de avaliação adequada dos impactos socioeconômicos para as comunidades afetadas

O estudo foi coordenado pelas professoras Raquel Maria Rigotto e Maxmiria Holanda Batista, do Departamento de Saúde Comunitária da UFC, e pelos pesquisadores Rafael Dias de Melo e Lívia Alves Dias Ribeiro, do Núcleo Tramas Trabalho, Meio Ambiente e Saúde.

A pesquisadora Raquel Rigotto explica, por exemplo, que as populações locais constroem essa região há gerações, com seus saberes e práticas ancestrais, desenvolvendo formas de convivência e uma economia popular muito pujante, incluindo produção agrícola, pecuária, arquitetura, artesanato e pesca.

“Há várias colônias de pescadores, inclusive na barragem do Açude Edson Queiroz. Então, há uma ameaça à viabilidade dessas comunidades e um questionamento sobre o estudo delas no estudo de impacto ambiental. Elas não foram consideradas em sua totalidade.”

Também pontuou que não, analisadas todas as dimensões, não está demonstrada a viabilidade socioambiental desse empreendimento.

Em nota, o Consórcio Santa Quitéria informou que não teve acesso ao documento.

“De acordo com o rito do processo de Licenciamento Ambiental, o órgão ambiental ainda deverá analisar o parecer e encaminhar ao empreendedor para esclarecer os questionamentos ou detalhar informações, se julgar necessário. Tão tenhamos acesso aos estudos, também iremos nos manifestar.”

Movimento popular continua contrário à exploração

Também presente na audiência, Pedro D’Andrea, diretor nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), afirmou que há uma manutenção do posicionamento contrário de uma imensa maioria da população em relação ao projeto.

“Há outro elemento crítico, que é justamente a falta de informação e a insegurança sobre a qualidade da água, tanto no cenário atual, sem o licenciamento do projeto, como, sobretudo, no cenário de licenciamento, no que diz respeito às possíveis contaminações.”

Nesse sentido, afirmou que há comprovações científicas da relação entre radiação e câncer, bem como dos impactos do uso do urânio em processos industriais, nos quais há a presença de vários outros metais pesados altamente prejudiciais à saúde.

Já o deputado estadual, Renato Roseno (Psol), acredita que há uma falha grave no processo de licenciamento. “Eu já entrei no Ministério Público Federal contra o processo de licenciamento porque as populações tradicionais, especialmente indígenas, não foram ouvidas.”

Próxima audiência será em Itatira

A segunda audiência pública sobre o Projeto Santa Quitéria está marcada para quinta-feira, 13 de março, às 14 horas, na Quadra de Eventos São Francisco da Paróquia Nossa Senhora do Carmo, no distrito de Lagoa do Mato, em Itatira.

Além da audiência presencial, haverá um ponto de apoio e transmissão na Escola Municipal Coronel Artur Themoteo, na zona rural de Santa Quitéria.

O debate deve continuar com a participação de entidades públicas, sociedade civil e representantes do consórcio, refletindo os embates entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental no Ceará.

Histórico do Projeto Santa Quitéria

O Projeto Santa Quitéria é conduzido por um consórcio formado pela estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e pela empresa Galvani Fertilizantes.

A mina de Itataia, localizada no município de Santa Quitéria, abriga a maior reserva não explorada de urânio do Brasil. A exploração da jazida está associada à produção de fosfato, utilizado na fabricação de fertilizantes.

Desde os anos 1970, tentativas de exploração foram barradas por critérios ambientais. A proposta atual do consórcio, reformulada desde 2020, prevê um investimento de R$ 3 bilhões ao longo de 20 anos.

Também estima uma produção anual de mais de 1 milhão de toneladas de fertilizantes fosfatados, 220 mil toneladas de fosfato bicálcico para suplementação animal e 2,3 mil toneladas de concentrado de urânio (yellowcake).

Apesar do potencial econômico, o projeto enfrenta críticas, especialmente em relação ao consumo de água. A atividade exigiria cerca de 855 metros cúbicos de água por hora, o que tem gerado preocupação quanto ao impacto nos recursos hídricos locais.

Fonte: O Povo Online