Técnica ancestral, cerâmica do Ipu é reconhecida como patrimônio cultural

Lei sancionada reconhece prática tradicional da Comunidade da Alegria

Um técnica feita no Ceará há cerca de 5 séculos foi oficialmente reconhecida como “Bem de Destacada Relevância Histórica e Cultural do Estado do Ceará”: a produção de cerâmicas artesanais pela Comunidade da Alegria do município Ipu. A decisão está na Lei Nº19.458, sancionada pelo governador Elmano de Freitas e publicada no Diário Oficial do Estado (DOE) em setembro.

Técnica realizada especialmente por artistas mulheres, a obra de barro ornamentada carrega, entre os vãos esculpidos pelas chamadas ceramistas, marcas de saberes ancestrais e reminiscências do território ipuense, uma vez que suas raízes remontam aos séculos XVI e XVII, quando estes utensílios e objetos cerimoniais feitos a partir do barro eram cunhados pela Comunidade da Alegria.

Comunidade da Alegria, uma das protagonistas locais no manuseio da cerâmica, trabalha sua arte a partir de elementos da natureza serrana e da cultura interiorana. O grupo se desenvolve na região desde a colonização de Ipu, quando as cerâmicas eram produzidas tanto nas chamadas casas-grandes como para residências de menor poder aquisitivo.

Atualmente, a atividade sustenta cerca de 15 famílias na comunidade. Em um galpão coletivo, 12 mulheres são responsáveis pela produção e comercialização das peças, enquanto os homens atuam em tarefas mais braçais, como a coleta do barro e da lenha utilizada na queima.

Franciner Fortuna, 65, artesã nascida e criada na Comunidade da Alegria, trabalha com cerâmica desde os 10 anos de idade. “Minha mãe me colocava para amassar o barro e modelar as peças”, lembra. Na perspectiva de quem passa por todos os processos de feitura de peças de cerâmica, ela pensa que essa produção é algo “muito trabalhoso, muito pesado… Só trabalha mesmo quem tem coragem. Quem não tem, não se mete não”.

Atravessando gerações de avós, mães e netas, as técnicas de produção mudaram para maior resistência e durabilidade das cerâmicas, mas seguem conservando design rústico e original das peças com cearensidade na veia.

A partir do apoio e fortalecimento institucional implicados pela sanção da lei, a valorização dos saberes populares e a visibilidade da cultura local são alcançadas neste processo, bem como abre janelas de oportunidade para a comunidade.

O professor do Departamento de Geografia da UFC, Tiago Cavalcante, lembra que, a partir deste marco legislativo, a comunidade ipuense Alegria passa a fazer parte da chamada “geografia do patrimônio cultural cearense”.

Segundo o pesquisador, isso acarreta “estar visível em novas escalas e possibilita estratégias tanto de visitação como de difusão da cultura ali produzida. Direta ou indiretamente, o reconhecimento pode implicar na economia local, uma vez que, especialmente nos dias de hoje, qualquer acontecimento que se dá no local tem a potência de ser global, via redes virtuais”.

Para além do desenvolvimento econômico imediato acarretado pela ampliação da economia local, é elencado o sucesso deste reconhecimento às futuras gerações de oleiras e ceramistas. A prática de tornar argila e barro em objetos de fins úteis tem reminiscências da etnia Tabajara, povos originários que ocupavam o território cearense antes do aporte do colonizador português.

Naquela época, a cerâmica produzida constituía urnas para enterrar os mortos e conservar as cinzas de familiares. Com o decorrer do tempo, o processo de colonização e as devidas apropriações culturais peculiares da terra mudam os fins dessa construção, como armazenamento de água potável e produção de utensílios domésticos, entre outros usos.

“É uma coisa, uma tradição que vem dos mais velhos, é um meio de renda da gente se manter também, né?”, afirma Maria Clara Alves, 42, que também aprendeu com a mãe a moldar travessas, potes, panelas e cofres de barro, ainda aos 8 anos. “A Cerâmica da Alegria significa tudo para mim, porque foi através das minhas peças, do meu esforço, do meu empenho, que hoje eu sou o que sou. Tudo é feito manualmente, nada de máquina, nada de torno. É muito gratificante”.

Ela também destaca a ausência de interesse das novas gerações: “Os jovens não querem levar à frente a profissão, porque é muito trabalhoso. Depende de muita força de vontade. Se não tiver, não encara mesmo. E é isso, a gente fica triste, porque corre o risco de acabar”.

Contudo, sob a óptica do geógrafo, o reconhecimento desta prática vernacular – expressões culturais feitas por pessoas comuns, com elementos da cultura popular e do cotidiano – por uma instância maior possibilita não só a consagração de uma identidade cultural, mas também desenvolve o interesse e a curiosidade da nova geração.

“Reconhecimentos como este colocam em relevo culturas por muito tempo deixadas em segundo plano, colocadas de lado. Instigam, inclusive, os mais jovens a serem também seus aprendizes e propagadores. Afinal, tais culturas estão, infelizmente, em constante risco de desaparição”, trata Tiago Cavalcante.

Também neste ano, a cerâmica feita pela comunidade ipuense conquistou o título Indicação Geográfica (IG), concedido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Os itens  passam a integrar o seleto grupo de produtos brasileiros com Indicação de Procedência (IP), categoria da IG que identifica regiões tradicionalmente reconhecidas por sua produção.

FONTE: DIÁRIO DO NORDESTE