Médica acusada de manter idosa sem salário por 27 anos tentou barrar operação do MPT em Ribeirão Preto

Patroa tentou fugir de casa com empregada doméstica, mas foi contida pela Polícia Militar em outubro. Investigação aponta que regime durou quase três décadas.

A médica acusada de manter a empregada doméstica em regime de escravidão em Ribeirão Preto (SP) ao deixar de pagar salário por 27 anos tentou barrar a fiscalização do Ministério Público do Trabalho (MPT) em sua casa.

A informação foi divulgada nesta quarta-feira (7) pelo procurador do trabalho Henrique Correia, que participou da diligência. Na operação, ocorrida em outubro, a médica tentou deixar o local com a idosa, mas acabou sendo contida pela Polícia Militar (PM), que reconduziu as duas até o imóvel no bairro Ribeirânia, zona Leste da cidade.

“Numa cena até parecida com filme, a empregadora colocou a trabalhadora no carro e saiu, dizendo que ia ao dentista. A Polícia Militar interveio e conseguiu a qualificação. Foi o primeiro contato com a empregada doméstica”, disse Correia, em coletiva.
Um comunicado divulgado pelo MPT aponta que, durante a fiscalização, a suspeita disse à auditora Jamile Virgínio frases como “minha vontade era de te esganar” e “eu queria te bater, se eu pudesse”.

O Ministério Público do Trabalho afirma que a médica tentou impedir que a empregada fosse identificada, dificultando a entrega de documentos. Ao retornar à residência, autorizou a entrada dos agentes e acionou um advogado, segundo o procurador.

Os patrões diziam guardar o dinheiro da idosa para comprar uma casa para a mulher, mas a vítima nunca recebeu o imóvel prometido. A médica e o marido dela, um empresário, não tiveram os nomes divulgados e são investigados pela Polícia Federal (PF).

O trabalho

A idosa foi resgatada por meio de uma força-tarefa deflagrada em 24 de outubro pelo Ministério do Trabalho e Previdência (MTP), pela Polícia Militar (PM) e pelo Ministério Público do Trabalho.

Segundo a auditora Jamile Virgínio, a idosa trabalhou por 27 anos sem ter direito a salário nem folga. (leia mais abaixo)

“Ela tinha a esperança e uma crença de que a empregadora guardasse o dinheiro em uma conta bancária para que, no futuro, ela pudesse comprar uma casinha. Ela colocou isso não só para a equipe de fiscalização, mas também para a vizinhança”, afirmou a auditora.

Força-tarefa libertou idosa de trabalho análogo à escravidão em Ribeirão Preto, SP — Foto: Divulgação/MPT

Cartão de BPC confiscado

Ainda de acordo com a servidora, a vítima havia sido inscrita pela patroa no Benefício Previdenciário Continuado (BPC), concedido pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), mas não tinha acesso ao cartão de saque. Atualmente, o benefício tem o valor de um salário mínimo: R$ 1.212.

Jamile explicou que a empregada não poderia ser inscrita, uma vez que trabalhava para o casal e deveria receber salário.

“Ela foi cadastrada para receber esse benefício pela empregadora, e a empregadora fazia administração desse recurso. Comprava gêneros de primeira necessidade, shampoo e sabonete. Dava a ela uma pequena parte desse benefício, e o restante não se sabe o que foi feito até hoje. Do salário, ela nunca recebeu nada”, completou.

A auditora fiscal Jamile Virgínio foi ameaçada pela patroa da idosa em Ribeirão Preto, SP — Foto: Reprodução/EPTV

Bloqueio de bens

Na sexta-feira (2), a Justiça bloqueou R$ 815,3 mil em bens dos acusados. O montante será transferido para a idosa, com objetivo de reparar os abusos praticados pelos empregadores, informou o Ministério do Trabalho e Previdência.

Além dos bens, a transferência de um veículo do casal também foi bloqueada.

Investigação

O inquérito civil foi instaurado após o recebimento de uma denúncia anônima. A diligência foi conduzida pelo procurador Henrique Correia e pelos auditores fiscais do trabalho Sandra Ferreira Gonçalves, Jamile Virgínio e Cláudio Rogério Lima Bastos, além de policiais militares.

Em depoimento, a vítima contou que os patrões enviaram aproximadamente R$ 100 todos os meses ao seu irmão, que mora em Jardinópolis (SP), a 22,6 quilômetros de Ribeirão Preto.

Mudança de família

Segundo o procurador Henrique Correia, a mulher começou a trabalhar como doméstica na infância, na casa de outra família. Ela se mudou para o imóvel do empresário e da médica após a morte da antiga patroa.

“Mulher, negra, de origem humilde, analfabeta, ela é mais um exemplo de interseccionalidade, uma vez que evidencia a sobreposição de opressões e discriminações existentes em nossa sociedade, as quais permitiram que tantos anos se passassem sem que a presente situação de exploração fosse descoberta pela comunidade que rodeava a família”, diz o procurador.

Desdobramentos

A vítima foi encaminhada à Defensoria Pública da União (DPU) e foi acolhida pela família em Jardinópolis. Ela é acompanhada pela Secretaria de Assistência Social do município.

O casal pode ser incluído na chamada “lista suja” do trabalho escravo, cadastro que reúne empregadores que submeteram os empregados a condições análogas à escravidão. O caso foi apresentado à Polícia Federal (PF).

Fonte: G1