Cineasta amador cria ‘Hollywood cearense’ em povoado de Forquilha e transforma quase todos os habitantes em atores

Comunidade de Salgado dos Mendes, em Forquilha, já produziu mais de 30 filmes em quase 20 anos

Seria um pequeno povoado como qualquer outro no interior do Ceará, com poucas ruas organizadas a partir de uma igreja matriz e equipado com mercearia, oficina, escola e posto de saúde. Mas Salgado dos Mendes, na zona rural de Forquilha, a 260km de Fortaleza, vai além: é a “Hollywood Cearense”. Por lá, já foram filmadas mais de 30 produções que já receberam prêmios e ajudaram na formação artística da população.

O idealizador dessa história foi o agricultor, líder comunitário, produtor cultural e cineasta Josafá Ferreira Duarte, 64, há quase 20 anos. Em 2006, ele passou a incentivar a arte da dramaturgia na comunidade, mesmo sem conhecimento técnico. “É um cinema popular que é feito sem a formação acadêmica”, disse ele, em entrevista à reportagem do Diário do Nordeste, que esteve no local no fim de janeiro.

Josafá Duarte em frente à própria casa em Forquilha
Legenda: Prestes a completar 65 anos, cineasta revela desejo de continuar fazendo arte
Foto: Davi Rocha

 

Ainda assim, o trabalho compensa. Em 2015, a produção “Cadê meu zóculos?” venceu o Festival de Cinema de Jericoacoara. Conforme a sinopse, “em Barro Vermelho, só ganha eleição quem compra voto; aqui se troca voto por óculos, dentaduras, pagamento de água e luz atrasada, promessas de empregos…”.

Dois anos depois, após aprovação da Assembleia Legislativa, o então governador Camilo Santana sancionou a lei estadual nº 16.266/2017, reconhecendo Forquilha como “a capital cearense do cinema popular”. “Um feito inédito”, comemora Josafá.

Já em 2019, a comunidade virou tese de doutorado na Universidade Federal de Goiás (UFG) a partir do trabalho “Josafá Duarte e o Cinecordel: O Cineasta Cabra da Peste Contra o Dragão de Roliúdi”, do pesquisador em arte e cultura visual Paulo Passos de Oliveira.

Segundo Josafá, com essa trajetória, não há mais câmera que intimide os salgadenses.

“Hoje virou já virou comum, né? Aqui a comunidade tem em torno de 500 habitantes, e acho que numa faixa de uns 400 já participaram. Todos, do pequeno ao mais velho”, conta. “Pode chegar aqui uma equipe da Globo que o pessoal não se envergonha, já estão acostumados com esse dia a dia da nossa gravação”.

Cena de filme amador feito no Ceará
Legenda: Cena do premiado ‘Cadê meu zóculos?’ (2015)
Foto: Reprodução/Forquilha CineCordel

 

Entre os filmes produzidos em Salgado dos Mendes, estão:

  • Os malas e os trouxas
  • Santeiro Luminoso contra o santo do pau oco
  • O homem que queria enganar a morte
  • A espiã que amava Forquilha
  • Forquilha sob ameaça química
  • O homem da mala preta
  • O mistério da Lagoa dos Melos
Letreiro do povoado de Salgado ao lado da igreja matriz
Legenda: Pelo destaque estadual e nacional, Salgado ganhou um letreiro especial na praça
Foto: Davi Rocha

 

Início da produção

Os curtas-metragens, em sua maioria, são sátiras ficcionais com o objetivo conscientizar politicamente a população sobre direitos e deveres. Por meio da comédia, Josafá explica que promove reflexões sobre a relação entre eleitores, autoridades e “o sistema”. No entanto, isso não impede o desenvolvimento de argumentos sobre o meio ambiente, como desmatamento e poluição.

Esses temas partem da própria história de Josafá. Ele se mudou com a família para Fortaleza, no fim da década de 1970, e se envolveu com o movimento de bairros e favelas. Em contato com a liderança social, passou a integrar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Após ser ameaçado de morte por latifundiários em uma ocupação na cidade de Pentecoste, ele decidiu retornar a Salgado dos Mendes. No pequeno povoado, se deparou com diversas irregularidades eleitorais, como compra de votos e garantia de emprego para apoiadores das gestões no poder.

Daí veio a ideia de utilizar a arte como “denúncia e instrumento de luta popular”. A base já tinha: na capital, havia participado de um grupo de teatro popular no bairro Parangaba. Aos poucos, ele foi convencendo pessoas próximas a participar das produções filmadas.

DVDs e folhetos de cordel expostos em varal
Legenda: Filmes e cordéis ficam expostos na casa de Josafá
Foto: Davi Rocha

 

Em paralelo, o cineasta começou a escrever um pequeno jornal chamado “Sociedade Salgadense”, definido como “uma maneira da gente começar a divulgar e reivindicar as melhorias para a comunidade”.

“Por ser um lugar muito pequeno, era muito explorado politicamente, entendeu? A turma queria mesmo só os eleitores… pegou o voto e vai embora. Como eu já tinha essa vivência nas lutas sociais, resolvi usar esse meu conhecimento para defender a comunidade”, alega.

Apoio para as gravações

No início, Josafá não tinha câmera. Precisou pedir emprestado a conhecidos de Sobral e da sede de Forquilha. Aos poucos, as produções saíram de Forquilha e ganharam até outros Estados. Elas também despertaram o interesse de Rosemberg Cariry, reconhecido cineasta cearense que procurou Josafá para conversar sobre o cinema de origem popular.

Cariry chegou a oferecer aparelhos de sua produtora para proporcionar melhor qualidade aos filmes, mas sem se intrometer no tema ou direção. Como resultado, veio “Cadê meu zóculos?”, justamente o premiado em Jericoacoara.

Nos últimos anos, o cinecordel de Forquilha também foi beneficiado com apoio financeiro das leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo. Hoje, munido apenas de uma “maquininha que não é profissional” e um computador, a perspectiva é continuar. “Vamos fazer uma fundação cultural aqui, e lá vai ter um estúdio de gravação para os filmes”, adianta Josafá.

Josafá Duarte segura dois prêmios
Legenda: Josafá mostra prêmios já conquistados, como Festival de Jericoacoara e Cine Ceará
Foto: Davi Rocha

 

Em 2023, por sua contribuição, o cineasta foi um dos cinco homenageados com o Troféu Eusélio Oliveira na 33ª edição do Cine Ceará – Festival Ibero-americano de Cinema. Neste mês, ele também será personagem de um episódio da websérie “Nós no Batente”, produzido pelo Hub Cultural Porto Dragão, vinculado à Secretaria da Cultura do Ceará (Secult).

“Os filmes já foram exibidos na Alemanha, em Portugal, no Uruguai… Quer dizer, pegou uma proporção bem interessante”, diz Josafá. “Acho que isso é que tem chamado atenção do Ceará e do mundo lá fora: a gente faz um cinema popular voltado para as realidades locais, para a política local”.

Parte dos filmes pode ser vista no canal do Forquilha CineCordel no YouTube.

Fonte: Diário do Nordeste