Como a especulação em Jericoacoara tem ajudado a desconstruir um paraíso turístico no Ceará
Um dos principais destinos de brasileiros e estrangeiros é alvo de disputas entre poder público, empresários e moradores
Desde 2024, a Vila de Jericoacoara tem passado por discussões sobre a propriedade de terrenos, acesso aos espaços e sustentabilidade entre o fluxo de visitantes e a proteção ambiental. A área é um dos destinos mais frequentados do litoral do Ceará, mas também alvo de impasses jurídicos entre o poder público, entes privados e moradores locais.
Até a década de 1970, Jeri era um paraíso praticamente intocado, habitado por poucas famílias de pescadores. Porém, o local foi “descoberto” pelo turismo de aventura e passou a atrair brasileiros de outras regiões e estrangeiros. A decadência da pesca anos depois levou os moradores a investirem na recepção dos visitantes.
A reestruturação induzida pela necessidade de infraestrutura para o turismo trouxe grandes transformações socioespaciais para o município de Jijoca de Jericoacoara. Por isso, a gestão transparente dos recursos naturais se torna essencial para garantir a preservação do ambiente nativo que tornou a Vila tão conhecida nos últimos 40 anos.
Segundo dados do projeto MapBiomas, a área urbanizada da cidade como um todo cresceu de 198 hectares, em 1985, para 449 hectares, em 2023. Em paralelo, áreas destinadas à agropecuária cresceram ainda mais, de 583 para 5.109 hectares. Por outro lado, no mesmo período, a área coberta por florestas caiu de 15.114 hectares para 10.708 hectares.
Em resumo, de 1985 a 2023, as formações naturais caíram de 95,7% para 73% no município. Já as modificações antrópicas (feitas pelo ser humano) passaram de 4,3% para 27%.
Um dos maiores impactos ocorreu sobre a famosa Duna do Pôr do Sol. Ela foi extremamente modificada ao longo das décadas de atividade turística, perdendo a maior parte dos sedimentos e sendo rebaixada em mais de 50 metros.
Leandro Muniz Barbosa da Silva, doutorando em Geografia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) com pesquisa sobre a gestão e governança territorial do turismo no entorno do Parque Nacional de Jericoacoara (Parna Jeri), percebe diversos impactos sobre o ambiente natural com a “turistificação” da Vila após transformações na paisagem e no uso do solo.
“A intensificação dessa dinâmica produziu pressões sobre os ecossistemas locais, gerando impactos ambientais como o avanço da urbanização sobre áreas sensíveis, degradação de habitats naturais e conflitos socioambientais”, destaca.
A região tem uma expressiva diversidade ecológica, abrigando ecossistemas como manguezais, formações de restinga, dunas móveis, lagoas interdunares, afloramentos rochosos e uma extensa faixa litorânea, além de abrigar biodiversidade significativa de fauna aquática e avifauna.
Leandro lembra que o Parna Jeri, uma unidade de conservação federal colada à Vila, é uma das mais visitadas e emblemáticas do país, reconhecida por sua importância ecológica, turística e simbólica, cuja preservação deve ser prioridade nas estratégias de ordenamento do território.
Contudo, indica o pesquisador, a indefinição fundiária que a área atravessa compromete diretamente a efetividade da gestão ambiental integrada.
Ocupações irregulares na Vila
“Jeri, 40 anos atrás, foi protegida antes de ficar famosa. Isso criou uma lentidão necessária para estabelecer uma série de limites, como não poder fazer hotel ou piscina. Depois, isso foi sendo alterado, mas hoje ainda temos muitos limites do que pode ser feito”, recorda o empresário Fábio Nobre, membro do Conselho Empresarial de Jericoacoara (CEJ).

Ele ressalta que a comunidade local luta para impedir a descaracterização da Vila, como a permissão de asfalto nas ruas (ainda hoje são de areia), prédios altos e postes. “Outros locais do Ceará eram vilas de pescadores, mas se desenvolveram de forma descontrolada depois que a especulação imobiliária chegou. Jeri se desenvolveu de forma diferente”, diz.
Com tantos interesses econômicos envolvidos, o Ministério Público Federal (MPF) apura ocupações irregulares na Vila feitas por empreendimentos hoteleiros, com invasão, aterramento e privatização de área de praia, recomendando ações de reparação do dano ambiental provocado.
Uma das rés é a advogada Andrea Vale Spazzafumo, atual superintendente da Autarquia de Desenvolvimento do Turismo, Mobilidade e Qualidade de Vida de Jericoacoara (Adejeri). O órgão municipal é o principal operador e fiscalizador do desenvolvimento sustentável da Vila.
O processo teve suspensão condicional concedida pela Justiça Federal após um acordo. No entanto, o MPF recorreu da decisão, e o recurso aguarda novo julgamento. A defesa da advogada sustenta que as ações penal e civil pública que mencionavam o nome dela “foram devidamente extintas sem qualquer aferição de culpabilidade ou responsabilidade por parte da mesma”.
Processo da ‘dona’ de Jericoacoara
A polêmica sobre a administradora se soma a outros processos envolvendo gestão territorial e sustentabilidade que se instalaram sobre a Vila desde 2024.
O lugar ganhou atenção da imprensa no ano passado, após a manifestação de uma suposta “dona” de Jeri. A empresária Iracema Correia São Tiago apresentou documentos ao Governo do Estado alegando ter domínio de cerca de 80% do local, mas exigiu como contrapartida apenas terrenos desocupados.
O Conselho Comunitário da Vila descobriu as negociações, que estão a cargo da Procuradoria-Geral do Estado do Ceará (PGE-CE), e entrou com manifestações próprias contestando a posse da empresária. A entidade defende que o tamanho dos terrenos aumentou sucessivamente ao longo dos anos até atingir a Vila.
Legenda: Ao longo dos anos, as transformações na Vila de Jericoacoara afetaram a paisagem local
Foto: Arquivo pessoal
Em paralelo, também foram solicitados pareceres do MPF, Defensoria Pública da União (DPU), Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace) e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Diante do imbróglio, a PGE-CE decidiu, em novembro do ano passado, suspender o processo extrajudicial por tempo indeterminado, “a fim de ouvir outros órgãos e aprofundar a análise de todos os pontos colocados”, bem como garantir a “segurança jurídica” do acordo com Iracema.
Em nota enviada à reportagem, o órgão estadual confirmou que o processo continua suspenso, no aguardo das manifestações das instituições que foram oficiadas, porque os procedimentos são “minuciosos” e “envolvem rastreio de documentações bem antigas”.
Ainda assim, a Procuradoria informou que acompanha diligentemente o andamento das atividades. “No momento, o Incra está em campo fazendo perícias para posteriormente se manifestar nos autos. A partir de então, teremos novidades”, ressalta.
A defesa de Iracema diz que aguarda “um desfecho positivo” em relação ao acordo sobre a titularidade das terras, pois “ficou comprovado aos órgãos públicos a legalidade da documentação apresentada por ela”.
Segundo os advogados, em novembro de 2024, o Cartório de Registro de Imóveis de Acaraú não só localizou as escrituras e a planta da época da compra das fazendas, na década de 1980, como demonstrou a cadeia dominial dos terrenos até a década de 1940, revelando sobreposição com a Vila de Jericoacoara.
A defesa ressalta que ela deve ficar com apenas 1/3 da área desocupada, “sem interferir nas áreas já tituladas”. “A sra. Iracema também renunciou expressamente a toda e qualquer indenização e ou reparação financeira eventualmente incidente em desfavor do Estado”, afirma.
O empresário Fábio Nobre, membro do CEJ, aponta que o “senso de emergência” do processo envolvendo a empresária uniu a comunidade local em torno de um objetivo: defender-se contra “manobras fundiárias” e “levantamentos topográficos impossíveis”.
“O valor de Jericoacoara deriva de 40 anos de união que você não encontra em outra praia. O Conselho é presidido pelos nativos, que trabalharam para Jeri ser o que é hoje. Isso criou valor financeiro, e todo mundo quer uma casquinha”, ilustra.
Legenda: Crescimento da rede hoteleira, comércios e serviços em Jericoacoara tem desafio de conviver com o desenvolvimento sustentável
Foto: Antonio Laudenir
Obras sem estudo de impacto ambiental
Outra polêmica envolvendo a Vila também surgiu no fim de 2024. De acordo com os limites geográficos estabelecidos na legislação, a Vila não é parte integrante do Parque Nacional; mas, para acessá-la por via terrestre, é preciso adentrar a área do Parna.
A questão é que o Parque foi concedido pelo Governo Federal à iniciativa privada em junho de 2024. O objeto da parceria é a “prestação dos serviços públicos de apoio à visitação, revitalização, modernização, operação e manutenção dos serviços turísticos”, incluindo o custeio de ações de apoio à conservação, proteção e gestão.
Isso inclui mudanças na infraestrutura, como perfuração de poços, construção de complexo de visitantes, colocação de banheiros e instalação de áreas para armazenamento de combustíveis, estacionamento de máquinas e equipamentos pesados.
Por conta disso, a Prefeitura de Jijoca de Jericoacoara ajuizou uma ação civil pública na Justiça Federal contra a União, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a empresa Urbia Cataratas Jericoacoara, vencedora da concessão, pedindo:
o impedimento de qualquer cobrança de ingresso (taxa de visitação) para acesso ao Parna Jeri;
a suspensão de todas as obras decorrentes da concessão até o devido licenciamento ambiental e obtenção dos alvarás de construção a serem emitidos pelo ente municipal.
Em maio de 2025, o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) também recomendou a suspensão imediata da execução do Contrato de Concessão do Parque Nacional e a paralisação das obras do empreendimento.
No entanto, também em maio, o juiz federal Sérgio de Norões Milfont Júnior, da 18ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Sobral, proferiu decisão dando razão parcial ao ICMBio.
Para o magistrado, há “arcabouço normativo suficiente” para considerar “regulares” as obras de engenharia realizadas no âmbito da concessão do Parna Jeri.
Além disso, proibiu que os réus cobrem ingresso para permitir o livre acesso a pessoas com destino exclusivo à Vila de Jericoacoara. Porém, emendou que a cobrança fica facultada “para a visitação aos atrativos do Parque Nacional”.
Por previsão contratual, deve haver isenção para moradores, frequentadores e trabalhadores da Vila de Jericoacoara, bem como para moradores de cidades vizinhas, “desde que devidamente cadastrados e identificados”.
Segundo Fábio Nobre, a comunidade deve recorrer da decisão na segunda instância. “Disseram que a novidade era só para organizar, que iam cobrar taxa pequena, que não teria obras impactantes, que o acesso à Vila seria livre. Mas o ICMBio está sendo bem permissivo em determinadas áreas virgens, com zero estudo ambiental”, comenta.
O que diz o ICMBio?
Em nota enviada ao Diário do Nordeste, o ICMBio confirmou que os moradores não são alvo de nenhuma cobrança em nenhuma fase do projeto. Somente visitantes que se destinam a atividades turísticas deverão fazer a aquisição do ingresso.
Quanto às mudanças na infraestrutura, informa que tem competência legal para autorizar diretamente a implantação de obras e serviços de uso público em áreas sob sua gestão, desde que respeitadas “as diretrizes do Plano de Manejo ou, na sua ausência, os objetivos da unidade”.
“Essa atribuição exclui, em determinadas hipóteses, a exigência de licenciamento ambiental junto ao IBAMA, conferindo ao ICMBio autonomia técnica e decisória sobre intervenções em unidades federais”, destaca.
Informa ainda que essa normatização inclui dispensa de licenciamento ambiental para estruturas como trilhas, sanitários, centros de visitantes, pórticos de entrada, estacionamentos e serviços de apoio à visitação, “considerados necessários à qualificação do uso público e à proteção ambiental”.
“Esse conjunto normativo assegura que todas as obras em curso no Parque Nacional de Jericoacoara estejam devidamente respaldadas por atos administrativos formais e embasadas em avaliações técnicas, com foco na minimização de impactos ambientais e na promoção da visitação ordenada e sustentável”, garante.
Fonte: Diário do Nordeste