Como Rosário, cidade natal de Messi, tornou-se palco de guerra de gangues
Cidade é passagem da produção agrícola, mas também é caminho por onde passa grande quantidade de drogas. Ciclo de mortes e prisões nas quadrilhas locais têm feito com que bandidos estejam em disputa por territórios há anos, fazendo explodir o número de homicídios.
O mercado da família de Antonela Rocuzzo, mulher do craque argentino Lionel Messi, foi atacado nesta quinta-feira (2) em Rosário, a cerca de 300 km de Buenos Aires. A cidade à beira do rio Paraná, terra natal de Messi, é comumente citada como a mais violenta da Argentina.
O estabelecimento da família de Antonela foi alvejado com 14 tiros durante a madrugada. Os criminosos deixaram uma mensagem direcionada ao atual melhor jogador do mundo pela Fifa.
“Messi estamos esperando por você. Javkin é um narcotraficante, ele não vai te proteger”, diz a mensagem.
A frase é referência a Pablo Javkin, prefeito de Rosário.
Embora o ataque ao supermercado da família da mulher de Messi gere mais repercussão do que o habitual, a briga entre fações criminosas na cidade já dura muitos anos. E, no começo de 2023, a crise ficou ainda mais aguda.
Entenda abaixo o que transformou Rosário num dos principais focos de violência no país vizinho.
Qual é a dimensão da violência em Rosário?
Segundo diferentes registros, houve pelo menos 55 homicídios na cidade este ano, o que dá uma média de quase uma morte violenta por dia. As vítimas são geralmente jovens, em sua maioria homens.
A maioria das mortes está ligada a acertos de contas ou vinganças entre as quadrilhas.
Hoje, Rosário tem a maior taxa de homicídios de toda a Argentina, perto de 20 por 100.000 habitantes, quando a média do país é inferior a 7. A violência na cidade tem passado de limites antes inimagináveis no país vizinho.
“Em 2021, foram doze homicídios de crianças. É difícil pensar que isso esteja acontecendo na Argentina”, exemplificou o jornalista Germán de los Santos, coautor de um livro sobre “Los Monos”, uma das principais gangues a gerar esse cenário, em reportagem do jornal espanhol “El País”.
Os habitantes dos bairros pobres do sul de Rosário são os que mais sofrem com a situação da cidade. É ali que fica o bairro de Las Flores, onde o poder dos Monos começou a se consolidar.
Como começou a aumentar a criminalidade?
A violência começou a crescer em Rosário no final dos anos 1990, quando também começou o boom da soja exportada pelos portos desta cidade.
Além dessa commodity, também passam pelo rio Paraná, onde fica Rosário, grandes carregamentos de cocaína oriundos de Colômbia, Peru e Bolívia, que raramente são detectados pelas autoridades locais.
O cenário em Rosário mudou definitivamente em 2013. Em maio daquele ano, Claudio ‘Pájaro’ Cantero, que na época era o líder dos Monos, que sempre foram considerados o principal protagonista do submundo local, foi assassinado com três tiros. O evento iniciou uma luta por territórios, tornando-se um marco para o começo de uma espiral de violência.
Como destaca reportagem da rádio “France 24”, paralelamente, em 2014 entrou em vigor um novo sistema execução penal na província de Santa Fé, que, ao dar agilidade aos processos, gerou um maior número de condenações.
A constante reconfiguração das quadrilhas criminosas – com líderes e figuras de segundo escalão presos ou assassinados – acirrou mais as disputas, que são resolvidas à força.
O que fazem as autoridades?
Recentemente, o prefeito Javkin discursou repetidas vezes sobre a falta de agentes para a polícia da cidade. Segundo ele, esse é um dos principais motivos para o aumento no tráfico de drogas e na criminalidade da região.
“Faz anos que quase nenhum carregamento de cocaína é apreendido”, disse no ano passado o especialista em tráfico de drogas Jorge Vidal sobre a operação nos portos da cidade.
“O narcotráfico corrompe tudo. Santa Fé [província onde fica Rosário] tem uma força policial pouco profissional e corrupta. Em cinco anos, dois delegados foram presos”, acrescenta Vidal.
Ao mesmo tempo, atualmente, a morte ou prisão dos principais líderes dos Monos, bem como de outros bandos como os Alvarados ou os Funes não necessariamente os tiram do mercado.
“Eles gerenciam os negócios dos presídios pelo celular, como se fosse um home office”, explica o jornalista De los Santos.
A violência gira toda em torno do tráfico de drogas?
“Os homicídios não têm necessariamente a ver com a lógica do crime de drogas”, opina Enrique Font, criminologista, professor e pesquisador da Universidade Nacional de Rosário, em entrevista à rádio “France 24”.
“Estamos diante de um cenário complexo, onde se combinam condições geográficas particulares e precariedade institucional significativa”, explica o procurador da Agência de Crime Organizado Luis Chiappa Pietra.
Para Font, a localização da cidade tem um papel central no que está acontecendo. Rosário é o principal centro urbano do agronegócio, atividade que move a economia argentina. Dos 29 terminais portuários localizados em sua região metropolitana, saem 40,2% das exportações nacionais.
“Os circuitos ilegais, de armas, pessoas e drogas, sempre circulam pelos corredores por onde passam as principais cargas legais”, explicou Font, que aponta que naquela cidade “as gangues que historicamente administraram esses circuitos ilegais sempre foram muito violentas.”
Simplificar o debate apenas como uma questão do narcotráfico permitiu que os governos provinciais se livrassem de parte da responsabilidade, já que, de acordo com o Código Penal Argentino esse é um crime federal. De qualquer forma, as práticas dos grupos que administram o comércio varejista de drogas são a principal causa da violência.
“Os crimes são muito mais diversificados. Rosário é uma cidade grande, mas os circuitos criminais são bastante concentrados e localizados, e em muitos casos pode-se identificar uma lógica de bairro por trás dos fatos”, esclareceu Chiappa Pietra.
Nos últimos tempos, como destaca “El País” o narcotráfico ampliou sua atuação para a extorsão de comerciantes. “Com a máfia não se mexe”, aparece escrito eventualmente em vitrines ou portas de empresas, cujos donos precisam pagar proteção.
Chama a atenção também a conexão da criminalidade com o futebol: é notório que o bando Monos, ainda sob a liderança de Cantero, costurou alianças com as torcidas organizadas dos dois principais times da cidade, Rosario Central e Newell’s Old Boys.
As lideranças das organizadas recebiam proteção dos criminosos e disponibilizavam torcedores para vender drogas pela cidade. Os Monos também teriam empresariado jogadores, alguns deles depois vendidos até para times da Europa.
Fonte: G1