‘Dona de Jeri’: empresária que pede terrenos na Vila denuncia invasões em meio a processo suspenso
Iracema Correia São Tiago aponta que hospedagens têm aumentado terrenos; Conselho Empresarial diz que alegação quer desviar foco de processo das terras
A disputa pela titularidade das terras da Vila de Jericoacoara segue em processo extrajudicial entre o Governo do Estado, moradores, empreendedores locais e Iracema Correia São Tiago, empresária que sustenta ter documentação de 80% da área. Porém, como o acordo está parado por tempo indeterminado, a empresária denuncia a possibilidade de invasão em terras de seu interesse.
Ao Diário do Nordeste, a defesa de Iracema informou que ela vê “com preocupação” a demora para finalização do processo, “uma vez que têm sido registradas diversas invasões de terras na Vila de Jericoacoara sem que as autoridades adotem providências para coibir a situação”.
Em janeiro de 2025, a empresária apresentou notícia de fato ao Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), na Promotoria de Justiça de Jericoacoara, relatando o crime de “invasão de áreas tidas como públicas por particulares”.
A argumentação utiliza um levantamento cartográfico do Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace), elaborado em 2018, que identificou 10,79 mil metros quadrados do que o órgão chamou de “avanços territoriais ilegais”.
Para os advogados, a denúncia demonstra que estão sendo realizadas ocupações irregulares, ampliações das instalações de estabelecimentos comerciais e de residências sobre terras tidas como de titularidade do Estado do Ceará, “em flagrante prejuízo ao interesse público e coletivo”.
“Vários hotéis e pousadas já estabelecidas têm ampliado as áreas que originalmente possuem, estendendo suas propriedades por meio de muros, cercas, jardins, bosques, quadras de beach tênis, etc”, apontam.
A empresária espera que o MPCE “adote as devidas providências contra os invasores de áreas, já que parte dessas terras é exatamente as que devem voltar para sua posse após a finalização do acordo”.
Fábio Nobre, membro do Conselho Empresarial da Vila de Jericoacoara (CEJ), tem uma interpretação diferente: diz que a alegação é uma “cortina de fumaça” para desviar a atenção do processo original.
“Não interessa quem está onde, interessa se determinada pessoa é dona ou não é dona de uma terra. Quem é dono de uma terra pode fazer o que quiser”, pensa. “Quem está na sua legítima propriedade em Jericoacoara e se sente prejudicado por uma coisa inexplicável, que pode prejudicar os seus direitos, tem todo o direito de fazer barulho e de protestar”.
O CEJ e o Conselho Comunitário de Jericoacoara têm argumentado, no processo extrajudicial, que houve possíveis fraudes documentais de Iracema para provar que ela possui titularidade de parte da Vila. Para os moradores e empresários, contudo, o tamanho da propriedade dela nunca atingiu a povoação.
“Todo mundo aqui sempre soube onde começavam e terminavam as terras de Iracema, sejam pelos diversos depoimentos de moradores antigos, de ex-funcionários da fazenda, de todos os que transitavam entre Jijoca e Jericoacoara ou pelos documentos da época da regularização fundiária”, destaca.
O MPCE foi procurado pela reportagem para informar se recebeu a notícia de fato e que encaminhamentos foram dados. Contudo, não respondeu até o fechamento desta matéria. O espaço segue aberto.
Em maio, Iracema também procurou o Ministério Público Federal (MPF) relatando as possíveis invasões. O órgão afirmou, em nota, que a representação está em tramitação. Foi determinada a instauração de procedimento para apurar o caso.
Também em nota, o Idace informou que aguarda parecer do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que ficou responsável por uma perícia cartorária no registro do imóvel para detectar a origem da propriedade, para se pronunciar no caso.
O Incra disponibilizou um técnico que pediu um prazo para essa análise, tanto pela dificuldade no manuseio da documentação de cartório como na avaliação de microfilmes, no caso de peças ainda mais antigas.
“Só há como ter uma posição acerca da questão das propriedades de Jericoacoara após a conclusão desse trabalho. Até lá, todas as questões referentes a titulações, revisões e tudo o que ocorreu neste processo de regularização fundiária de Jericoacoara está suspenso”, ressaltou o órgão.
Investigação de invasões
Os advogados de Iracema lembram que o MPF ingressou, desde 2014, com Ação Civil Pública e Ação Penal que atestaram a prática de invasões de terras realizadas por alguns donos de hotéis e pousadas.
Entre elas, destacam, estava Andrea Vale Spazzafumo, recentemente nomeada como superintendente da Autarquia de Desenvolvimento do Turismo, Mobilidade e Qualidade de Vida de Jericoacoara (Adejeri), órgão municipal criado para ser o principal operador e fiscalizador do desenvolvimento sustentável da Vila.
Embora a ação civil pública tenha indicado que o “protagonismo pelos ilícitos” recaía sobre a advogada, a ação penal foi encerrada pela Justiça Federal após um acordo em que os réus se obrigaram a cumprir determinadas condicionantes, pagaram multas e tiveram que desobstruir áreas ocupadas ilegalmente.
Como já respondeu ao Diário do Nordeste, Spazzafumo relata que sempre agiu dentro da lei. Segundo ela, esse processo ocorreu com julgamento de mérito, “não havendo qualquer condenação, sanção ou reconhecimento de ato ilícito”.
Apesar da extinção da punibilidade na ação criminal pelo cumprimento das condicionantes, o MPF recorreu do encerramento da ação civil pública, em fevereiro deste ano. O recurso ainda aguarda julgamento.
Aprovação de lei de regularização
Outra preocupação da defesa de Iracema foi a recente aprovação da Lei Complementar Municipal 204/2025, no início de maio, autorizando a regularização de construções irregulares do município de Jijoca de Jericoacoara. Para ela, isso permite “que as invasões sejam regularizadas a critério da Prefeitura”.
“As áreas que deverão retornar à Sra. Iracema e que estão sendo invadidas podem, em tese, ser regularizadas a terceiros invasores por mero ato administrativo. Leis dessa natureza são um verdadeiro incentivo ao desrespeito à Constituição, ao Plano Diretor, Código de Obras e Posturas e lei ambientais”, classificam os advogados.
A empresária solicita aos órgãos de fiscalização que “atentem ao que tem ocorrido atualmente no município de Jijoca de Jericoacoara”, reafirmando que a Lei Municipal poderá permitir regularizar terras invadidas.
Leandro Muniz Barbosa da Silva, doutorando em Geografia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) com pesquisa sobre a gestão e governança territorial do turismo no entorno do Parque Nacional de Jericoacoara (Parna Jeri), aponta que a proposta gerou “ampla controvérsia”.
“Não apenas pelo seu conteúdo permissivo frente à ocupação irregular, mas também pelo trâmite em regime de urgência, que inviabilizou a participação da população local, o que reforça os desafios de acesso e representatividade no processo decisório”, afirma.
Segundo defendeu o prefeito Leandro Cézar nas redes sociais, o propósito da lei é “garantir dignidade aos moradores que, há anos, aguardam a chance de regularizar seus imóveis”. “Não se trata de abrir espaço para novas irregularidades, mas sim de corrigir injustiças históricas e construir, juntos, uma Jijoca mais justa, organizada e segura”.
Processo está parado
O único ponto de convergência entre Iracema Correia São Tiago e o Conselho Comunitário da Vila é a demora na conclusão do acordo extrajudicial, que está a cargo da Procuradoria-Geral do Estado do Ceará (PGE-CE).
Após a grande repercussão do caso, o órgão decidiu, em novembro do ano passado, suspender o processo por tempo indeterminado para “ouvir outros órgãos e aprofundar a análise de todos os pontos colocados” e garantir “segurança jurídica” ao acordo.
A PGE confirmou à reportagem que o processo continua suspenso, no aguardo das manifestações das instituições que foram oficiadas, porque os procedimentos são “minuciosos” e “envolvem rastreio de documentações bem antigas”.
“Essa investigação chama atenção pela demora na conclusão dela”, acredita o empresário Fábio Nobre. “Afinal, é uma investigação para analisar documentos existentes. Chama atenção a demora de mais de 6 meses, já que nós temos essa investigação em curso, sem uma conclusão”.
Gestão territorial integrada
Devido a esses problemas, o pesquisador Leandro Muniz defende a necessidade de se atualizar a legislação territorial de Jijoca de Jericoacoara. Na Vila, os parâmetros que regulam o uso e a ocupação do solo são do Plano Diretor vigente desde 2009. Ou seja, ele “permanece desatualizado frente às intensas transformações territoriais impulsionadas pelo turismo”.
Para ele, é necessária uma revisão criteriosa das licenças urbanísticas já concedidas, bem como a intensificação do monitoramento sistemático da ocupação, especialmente na Vila de Jericoacoara, “onde a pressão sobre o solo é mais acentuada”.
“A criação ou reativação de conselhos gestores com representação multissetorial – poder público, comunidade local, setor turístico, organizações ambientais e pesquisadores – é essencial para promover decisões coletivas, fiscalizar a ocupação do solo e mediar conflitos de interesse entre conservação ambiental e exploração econômica”, acredita.
Fonte: Diário do Nordeste