Fósseis de Itapipoca revelam últimos grandes mamíferos da Era do Gelo no Brasil
Animais foram encontrados em sítios arqueológicos de Itapipoca, no Ceará, e na localidade de rio Miranda, no Mato Grosso do Sul
Pesquisadores brasileiros identificaram os locais onde viveram as últimas espécies de megafauna da “Era do Gelo” nas Américas. O artigo “3,500 years BP: The last survival of the mammal megafauna in the Americas”, foi publicado em janeiro no Journal of South American Earth Sciences, e pode revolucionar os estudos mundiais que discutem os eventos de extinção abrupta desses animais no limite do Holoceno-Pleistocenos, há aproximadamente 11 mil anos.
Os cientistas analisaram amostras de fósseis da megafauna de mamíferos, obtidas nas localidades de Itapipoca – Sítio Paleontológico do Jirau, Ceará, e no rio Miranda – Mato Grosso do Sul -, e revelam que esses animais podem ter vivido em uma época mais próxima da atual. O método utilizado para a datação dos fósseis foi 14C-AMS (Datação do Carbono 14 por Espectrometria de Massa com Aceleradores).
Os fósseis analisados são das coleções paleontológicas do Museu de Pré-História de Itapipoca, no Ceará, e do Laboratório de Zoologia do Departamento de Biologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul.
Com o objetivo inicial de identificar qual o período de extinção dessa fauna, os pesquisadores se surpreenderam com os resultados obtidos nas datações, que revelaram uma idade de aproximadamente 3.500 anos para os fósseis de Xenorhinotherium bahiense e Palaeolama major.
As evidências arqueológicas obtidas durante a pesquisa revelam que as teorias de caça predatória por humanos e rápida expansão humana para novos territórios podem não ser as mais adequadas para explicar a extinção da megafauna na América do Sul.
De acordo com Fábio Cortes, pesquisador responsável por liderar o projeto, existem inúmeros registros de animais da megafauna da Era do Gelo identificados no Brasil, sendo o Nordeste a região mais expressiva para essas notificações. Apesar disso, ele ressalta que não havia quantidades significativas de datações para esses registros.
“Então, a gente começou a aprofundar essa questão a partir do pós-doutorado: vamos datar fósseis da megafauna para a gente melhorar, tentar melhorar, o tempo que essa megafauna viveu no território brasileiro”, conta.
As idades encontradas pelos pesquisadores, entretanto, surpreenderam a equipe. “Por sorte, ou por trabalho, a gente conseguiu identificar esses dados interessantíssimos; as idades interessantíssimas do Holoceno, que indicavam que a megafauna viveu no território brasileiro muito além do limite Holoceno-Pleistoceno, há 11.700 anos (…). O que vigorava na comunidade científica é que essa megafauna estivesse sido extinta nesse limite do Holoceno-Pleistoceno”, acrescenta.
Fósseis encontrados em Itapipoca datam do Quaternário
Celso Ximenes, pesquisador do Museu de Pré-História de Itapipoca (Muphi), instituição responsável por fornecer seis das sete amostras de espécies datadas pelo estudo, explica que os fósseis encontrados em Itapipoca datam do Quaternário, conhecido como período das glaciações.
O pesquisador conta que esse período se divide em duas épocas, o Pleistoceno (2,5 milhões a 11,7 mil anos atrás) e o Holoceno (11,7 mil anos até o presente).
“Na Paleontologia de megafauna, havia um consenso de que esses grandes mamíferos da Era do Gelo se extinguiram há cerca de 10 mil anos. Viveram, no máximo, há 10 mil anos. Ou seja, no final da última Era do Gelo”, explica Celso.
O pesquisador ressalta que, apesar do nome, os animais à época não necessariamente viviam no gelo, visto que apenas algumas áreas do planeta congelaram, o que não aconteceu com as regiões abaixo da Linha do Equador, com algumas poucas exceções.
Entre os mamíferos conhecidos por terem vivido em regiões mais frias, o pesquisador ressalta alguns animais conhecidos, especialmente divulgados pela indústria cinematográfica, como os mamutes e os rinocerontes-lanosos.
O Brasil, por outro lado, foi habitado por animais como a Preguiça Gigante (Eremotherium laurillardi; 6.161 ± 364 anos e 7.415 ± 167 anos), Tigre Dentes-de-Sabre (Smilodon populator; 7.803 ± 179 anos), Toxodon platensis (7.804 ± 226 anos), Xenorhinotherium bahiense (3.587 ± 112), Mastodonte (Notiomastodon platensis; 7.940 ± 502 anos) e Palaeolama major (3.492 ± 165 anos).
A convivência entre povos originários e a megafauna no Brasil já era conhecida pela ciência. Segundo Celso Ximenes, os pesquisadores já vinham encontrando vestígios dessa relação. Para ele, os resultados das datações reforçam a contemporaneidade entre as espécies, uma vez que as datações mais antigas para humanos no País são de aproximadamente 11 mil anos.
“A gente sabe que havia aproveitamento de carne de megafauna, porque a gente encontra vestígios nos ossos; a gente encontra vestígios de corte. Provavelmente, usavam ferramentas de pedra para cortar, descarnar o osso, deixar aquele corte no osso. A gente tem em Itapipoca vestígios disso e em outros lugares do Brasil também”, relata.
Nordeste: o santuário dos grandes mamíferos da Era do Gelo na América do Sul
Marcado pela irregularidade de chuvas, altas taxas de evapotranspiração, e uma vegetação herbácea composta por árvores e arbustos, o clima semiárido do Nordeste brasileiro propiciou condições favoráveis para preservar a fossilização dos grandes mamíferos da Era do Gelo.
Segundo Fábio Cortes, os tanques onde os fósseis desses animais foram encontrados, que hoje são utilizados como reservatórios de água pelos moradores locais, serviam de depósito aquífero para a megafauna, à época.
“Essa megafauna, ao morrer ao redor desses tanques, na região Nordeste, com a aproximação do período chuvoso, os ossos eram transportados, levados para dentro dessas cacimbas e preservados. O clima semiárido favorece a questão da preservação também ”, detalha.
Celso Ximenes, da equipe cearense que participou do projeto, explica que os fósseis encontrados em Itapipoca são de mamíferos da Era do Gelo, ou seja, do período Quaternário.
“É uma área que tem fósseis de mamíferos da última Era do Gelo. São mamíferos gigantes que a gente chama de megafauna quaternária. Até pouco tempo, a gente chamava de megafauna pleistocênica; mas a gente já começa a falar quaternária para envolver também o Holoceno”, ressalta.
O pesquisador conta que Itapipoca e a região do Cariri são localidades de destaque internacional em pesquisas paleontológicas.
“Os fósseis do Cariri, da Chapada do Araripe, são de um tempo geológico muito mais antigo, que é o período Cretáceo. São fósseis de 110 milhões de anos. No Cariri, tem fósseis de praticamente todos os organismos conhecidos pela ciência, desde bactérias e vírus, até dinossauros. Lá só não foi descoberto ainda, daquele período Cretáceo, fósseis de mamíferos. Lá tem tudo, menos mamíferos”, detalha.
Celso Ximenes revela que existem hipóteses de que muitas lendas indígenas se refiram aos animais da megafauna, que podem ter convivido com os ancestrais desses povos. Segundo o pesquisador, os povos originários utilizam a história oral para o repasse de informações entre gerações, incluindo a descrição de animais.
No folclore indígena nordestino, por exemplo, a lenda do Zamba se destaca pelo relato físico semelhante a de uma preguiça-gigante. De acordo com o pesquisador, uma curiosidade dessa lenda é que ela pode ter sido atravessada por histórias dos povos africanos, que foram trazidos escravizados para a região.
“Eles dão uma descrição de que seria uma criatura de mais de 2m, peluda, que tem urros horríveis e com uma característica interessante que é: ela dormiria encostada nas árvores; que ela não tem juntas nas pernas. Ela lembra muito uma descrição de uma preguiça-gigante”, conta.
Em Itapipoca, essas lendas estão associadas a uma das localidades onde foram encontrados os fósseis coletados para a pesquisa.
“Em Itapipoca é muito comum o que a gente chama de tanques naturais. São buracos nas rochas graníticas, piscinas naturais que acumularam água e sedimentos fósseis. Tem um deles que a população chama de Tanque do Zamba (…) O Tanque do Zamba é um tanque que tem fósseis, ou seja, o pessoal muito antigo encontrou esses ossos grandes e associou com a lenda, com a história dos indígenas”, ressalta.
Para os cientistas que trabalharam no projeto, uma das principais conquistas da pesquisa é a participação brasileira em todas as etapas.
A pesquisa incluiu pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Fábio Henrique Cortes Faria; Ismar de Souza Carvalho), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Hermínio Ismael de Araújo-Júnior, Museu de Pré-História de Itapipoca (MUPHI); Celso Lira Ximenes e da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS); Edna Maria Facincani.
“É um artigo científico, produzido por cientistas brasileiros; todos doutores de universidades e de instituições de pesquisa que usaram laboratórios do Brasil, fizeram escavações científicas no Brasil, o material é brasileiro; os fósseis. Tudo brasileiro. Um artigo, uma pesquisa 100% brasileiro”, destaca emocionado.
Fonte: O Povo Online