Mina de urânio em Santa Quitéria pode trazer riscos à água, à biodiversidade e à saúde humana, diz parecer da UFC

Estudo elaborado por pesquisadores a pedido de Ministérios Públicos contraria viabilidade informada pelo consórcio interessado na operação

Um estudo técnico de 128 páginas, liderado por pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC), questiona a segurança do Projeto Santa Quitéria (PSQ), empreendimento que busca explorar uma jazida de urânio e fosfato entre as cidades cearenses de Santa Quitéria e Itatira, nos Sertões de Crateús e de Canindé, respectivamente. O posicionamento contraria a empresa responsável pelo projeto, que divulgou, na última terça-feira (11), que o plano seria “viável”.

A possibilidade da exploração de uma mina de urânio e fosfato nesses municípios do Ceará é avaliada desde 2004, com vários desdobramentos e negativas anteriores ao projeto. Dessa vez, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) informou que o prazo do parecer técnico referente à análise dos estudos ambientais vai até o fim do 1º semestre de 2025.

Um dos documentos avaliados para isso será este parecer que foi elaborado a pedido do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Federal (MPF) e Ministério Público Estadual (MPCE), após ofício encaminhado à UFC em janeiro deste ano. O trabalho foi entregue em fevereiro por meio do Painel Acadêmico sobre a Mineração de Urânio e Fosfato em Santa Quitéria, com pesquisadores das áreas de Medicina, Biologia, Física, Direito, Serviço Social, Psicologia e Geografia, entre outras.

Mina de urânio em Santa Quitéria

O grupo avaliou tanto o Estudo (EIA) como o Relatório de Impacto Ambiental (Rima) desenvolvidos pela consultoria Tetra+, contratada pelo Consórcio Santa Quitéria, formado pelas empresas Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e Fosfatados do Norte-Nordeste S/A (Fosnor), detentora da marca Galvani. Ele será responsável pela operação da mina, caso o PSQ seja aprovado.

O EIA e o Rima foram apresentados em audiência pública em Santa Quitéria, na terça-feira (11), mediada pelo Ibama. O órgão federal é responsável por emitir uma licença para o início das obras, mas, atualmente, ainda analisa a viabilidade ambiental do projeto.

Mais uma Audiência Pública para discussão do EIA-Rima do Projeto Santa Quitéria ocorrerá nesta quinta-feira (13), às 14h, na Quadra de Eventos São Francisco da Paróquia Nossa Senhora do Carmo (e transmissão online via youtube do Consórcio), em Lagoa do Mato, desta vez na cidade de Itatira.

Consórcio busca licença para explorar urânio e fosfato

O resultado da análise dos documentos, conforme o grupo de pesquisadores liderados pela UFC, demonstra insuficiências e omissões de documentos, o que pode gerar impactos de difícil controle e que violam o ordenamento jurídico – embora a Tetra+ indique que o projeto é “viável” e “atende à legislação vigente”.

O parecer das universidades, contudo, identificou problemáticas relacionadas à saúde humana, disponibilidade de água na região, falhas no monitoramento de espécies da fauna e da flora e inconsistências sobre impactos nas atividades socioeconômicas.

Raquel Maria Rigotto, professora na Faculdade de Medicina da UFC e uma das coordenadora do parecer, contextualiza que há mais de 10 anos há um diálogo com a comunidade e estudos locais.

“Do ponto de vista da saúde humana, nós temos duas grandes vertentes de preocupação. Uma delas é que, praticamente, não abordaram a quimiotoxicidade do urânio, que é um metal pesado e se transforma em outros elementos, podendo gerar uma série de cânceres”, completa.

O risco também envolve danos para o sistema osteomuscular, prejudicando a formação de ossos de crianças, prejuízos para o sistema reprodutivo, sistema nervoso, central e o hepático, por exemplo.

“Comunidades em torno de minas de urânio, digo isso com base em estudos muito robustos, com 60 mil trabalhadores acompanhados há décadas, sofrem até mais com os efeitos quimiotoxicos do que com câncer, que é algo de longo prazo”, frisa.

Para Iara Vanessa Fraga de Santana, doutora em Serviço Social, professora titular da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e também integrante do Painel Acadêmico, é essencial incluir a população afetada na discussão. Segundo ela, que já desenvolveu pesquisas na região, muitos “territórios e comunidades vivem com muito medo de convivência com essa ameaça”, sobretudo pela possibilidade de desenvolver algum tipo de câncer.

Ela lembra que outras licenças prévias do PSQ já foram negadas pelo Ibama após anos de análise, então é preciso envolver o maior número possível de entidades na análise das matérias – incluindo da chamada “rota do risco”, municípios por onde o urânio deve ser transportado e escoado após extração da mina. “O risco não está só lá em Santa Quitéria; por onde o urânio passa, tem risco”, alerta a docente.

Em nota enviada ao Diário do Nordeste, o Consórcio Santa Quitéria informou que ainda não teve acesso ao parecer técnico-científico da UFC. “De acordo com o rito do processo de Licenciamento Ambiental, o órgão ambiental ainda deverá analisar o parecer e encaminhar ao empreendedor para esclarecer os questionamentos ou detalhar informações, se julgar necessário. Tão tenhamos acesso aos estudos, também iremos nos manifestar”, disse.

Imagem de Santa Quitéria, no Ceará

O grupo ressalta que, além das audiências públicas, mantém “contato constante” com a comunidade por meio de uma equipe de relacionamento dedicada e dois escritórios locais (nos municípios de Itatira e Santa Quitéria), “permitindo uma comunicação contínua com os moradores da região”.

Sobre a situação, o Ibama informou à reportagem que a audiência pública realizada busca disseminar informações, tirar dúvidas e receber sugestões da população em relação ao empreendimento, sendo prevista na Resolução Conama Nº 1/1990. “O papel do Ibama é presidir a audiência pública e conduzir o debate realizado no referido evento”, completou.

O parecer técnico-científico elaborado pela UFC será considerado no processo de análise do pedido de licença do projeto Santa Quitéria, bem como os demais que chegarem durante a audiência pública e aqueles que forem protocolados até 30 dias após a audiência.

Ameaça para a saúde

Existe uma preocupação com a saúde pública entre os moradores do Município com relação aos possíveis impactos da instalação da mina, como avaliado pelos pesquisadores no parecer técnico-científico.

Conforme o parecer liderado pela UFC, tanto no EIA quanto no Rima há uma “tendência à abordagem reducionista da saúde”. Nos documentos, há uma análise da infraestrutura pública de serviços de saúde disponível nos municípios abrangidos e o perfil de mortalidade desses lugares.

A análise aponta ainda que há uma tendência de “minimização dos riscos” já que a iniciativa aponta que “apenas 0,2% do volume total de produtos” será comercializado. Os demais 99,8% são para produtos fosfatados destinados à pecuária e à agricultura regional.

Contudo, “0,2%” representa 2.300 toneladas anuais de urânio que se pretende produzir. Essa quantidade é 24,9 vezes maior do que toda a produção da unidade da Indústrias Nucleares do Brasil (INB) em Caldas, em Minas Gerais, em 13 anos de operação, de acordo com a avaliação.

Outro ponto é que o Consórcio Santa Quitéria indica que na fase de operação deve gerar 538 empregos, entre funcionários e terceirizados, o que corresponde à possibilidade de absorção de 0,9% da população economicamente ativa, como um dos aspectos positivos para a região.

Porém, o parecer alerta que o serviço na mineração expõe os trabalhadores a diversos perigos à saúde e, por isso, o setor está classificado no maior grau de risco (4), de acordo com a legislação nacional de Segurança e Saúde no Trabalho.

Conforme os pesquisadores, o setor mineral é o maior responsável pelas mortes de trabalhadores em acidentes de trabalho no País, o que demonstra uma insuficiência das políticas de prevenção e controle de riscos.

Além de acidentes, os trabalhadores estão vulneráveis a uma doença pulmonar chamada silicose – resultado da reação tecidual pulmonar à deposição de partículas de sílica livre cristalizada. Isso acontece com relação ao urânio, sendo risco para quem atua na perfuração, escavação, trituração e outras atividades que geram poeira, diz o documento.

Os especialistas indicam como sendo extremamente relevante avaliar as consequências da exposição a diversas substâncias químicas como Enxofre, Amônia, Carbonato de amônio, Solvente Organofosfórico e o Flúor.

Sobre o risco de câncer, um detalhamento é feito considerando a cadeia de decaimento do urânio que impõe riscos à saúde dos trabalhadores pela emissão de radiações alfa, beta e gama

O grupo de pesquisadores avalia que a principal via de exposição para as comunidades próximas à mineração de urânio é a digestiva pela ingestão de água e de alimentos contaminados, como cereais, carnes, leite e ovos. As “rotas de contaminação” são água-humano, plantas-humano, plantas-animais-leite-humano, dentre outras.

Além desses aspectos, o parecer indica uma série de omissões ou de informações insuficientes com relação à emissão de contaminantes atmosféricos nocivos à saúde.

  • Ausência de justificativa para a alteração do estudo que subsidia a avaliação de impacto na qualidade do ar
  • Impactos na saúde humana decorrentes da alteração na qualidade do ar pela emissão de óxidos de enxofre pelo PSQ
  • Desconsideração da emissão de chumbo pelo PSQ e de seu impacto sobre a saúde humana
  • Omissão quanto à possível emissão de hidrocarbonetos aromáticos policíclicos e seus impactos sobre a saúde humana
  • Ausência da avaliação sobre o impacto da emissão de fluoretos sobre águas superficiais e subterrâneas

Considerando os aspectos relacionados à saúde, os pesquisadores produziram uma lista de recomendações. Confira:

  1. Que a CNEN exija do Consórcio Santa Quitéria (CSQ) a justificativa técnica para a utilização exclusiva de dados meteorológicos do ano de 2014 e para a adoção de um método alternativo de determinação da estabilidade atmosférica, conforme previsto na Norma CNEN NE 1.22.
  2. Que o IBAMA considere a modelagem de impacto radiológico atmosférico da unidade mínero-industrial inconsistente e inadequada para avaliação de impacto ambiental do PSQ.
  3. Que o IBAMA solicite que o CSQ realize nova modelagem de impacto radiológico considerando todas as fontes de emissão de radionuclídeos, incluindo as unidades de beneficiamento físico e químico da instalação mínero-industrial e suas 28 chaminés emissoras.
  4. Que essa nova modelagem inclua no estudo todas as vias de exposição relevantes para a população local, com especial atenção ao consumo de água dos açudes e cisternas, bem como à ingestão de peixes e seus respectivos processos de bioacumulação e biomagnificação.
  5. Que o IBAMA e a CNEN avaliem tecnicamente a adequação dos modelos utilizados e determinem a necessidade de reavaliação dos impactos radiológicos, considerando as fragilidades metodológicas apontadas.

Desabastecimento de água

O parecer  da UFC explica que o processo produtivo de exploração da jazida demanda um grande volume hídrico, incompatível pela localidade semiárida com características de déficit hídrico, e possui potencial de contaminação química e radiológica das águas. Descreve ainda que, em processos de licenciamento anteriores, “a insustentabilidade hídrica do empreendimento” foi um ponto de destaque para que a licença fosse negada.

Segundo os pesquisadores, o PSQ deve consumir o equivalente a 54 caminhões-pipa por hora, enquanto algumas comunidades da região, “que há anos reivindicam uma adutora”, recebem cerca de 26 a 36 caminhões-pipa por mês.

A alta demanda de água localizada em território de déficit hídrico se insere no circuito de degradação dos sistemas hídricos e potencialmente afetará as demandas locais e regionais de água bruta, versando em termos da quantidade e da qualidade de água disponível aos demais usos da bacia. (…) A condição de insegurança hídrica é uma lesão direta às legislações citadas.
Parecer técnico-científico

Além disso, o documento ressalta que o PSQ tem relação direta com a bacia hidrográfica do Rio Acaraú; assim, qualquer contaminação que eventualmente ocorra das águas na região do projeto tem potencial para se espalhar pelos territórios do entorno.

Impactos para plantas e animais

Outro ponto de análise dos pesquisadores foi o meio biótico, ou seja, os seres vivos que habitam a região. Um dos problemas apontados foi a ausência de análise de espécies vegetais que só se desenvolvem com as chuvas e a possível identificação incorreta de outras.

Um cacto endêmico da região (ou seja, não ocorrendo em nenhuma outra parte do mundo) teria sido deixado de lado no estudo do consórcio. Logo, “o desaparecimento dessa espécie pode influenciar negativamente em uma teia complexa de interações biológicas, além de impactar nos serviços ecossistêmicos de regulação, como a polinização”, detalha o parecer.

Além disso, não são apresentadas medidas específicas de proteção das espécies e nem indicadores que avaliem a situação populacional delas antes e após o impacto da atividade mineradora. Tampouco há um estudo de base (T0) sobre a radiação na fauna e flora nativa, o que compromete a capacidade de monitoramento e mitigação desses impactos.

Fonte: Diário do Nordeste