O sabor da memória | Zenilda e Rita, primeiras mestras da cultura na área de gastronomia no Ceará

Era uma segunda de manhã, dia de feira semanal em Assaré, cidade localizada no Cariri cearense. O café instalado no mercado público estava lotado. Na cozinha, Zenilda trabalhava intensamente para atender à fiel clientela de suas linguiças, com fama para além da terra natal do poeta Patativa.
Em outra segunda-feira, a mais de 500 quilômetros dali, a calmaria reinava na casa de Rita de Cássia. Com fala mansa e corpo franzino, ela é respeitada em Sobral por manter a tradição do fartes, doce tradicional de origem portuguesa.
Em comum, a linguiça e o fartes têm o feitio artesanal. É preciso caprichar para o resultado ser aprovado pelo crivo dessas senhoras que já ultrapassam oito décadas de vida.
Com personalidades e pratos tão diferentes, elas receberam, neste 2018, o título de mestras da cultura na área de gastronomia. Pela primeira vez, o edital Tesouros Vivos da Cultura, do Governo do Ceará, reconhece o talento de exímias cozinheiras.
Além disso, as senhoras festejam apreciadores ilustres. Uma irmã do humorista sobralense Renato Aragão costumava presenteá-lo com o doce de Rita de Cássia, enquanto Patativa do Assaré (1909-2002) era amigo de Zenilda e cliente assíduo do seu café, aberto em 1970.
Nesse ambiente de muitas histórias, Francisca Zenilda Soares Ferreira, 85 anos, posa para algumas fotos alternando o atendimento do balcão. Experimentamos, é claro, a linguiça com tapioca, que custa R$ 8,50 (a porção). É deliciosa, com tempero no ponto certo. Esse é um dos segredos desse quitute feito na família de Zenilda há mais de 70 anos. Os outros são o pernil de porco caipira, adquirido de um fornecedor confiável, e a banha de porco para assá-la. Fica crocante.

O processo é demorado, como Zenilda demonstra, após o almoço, na cozinha de casa. A carne é picada com uma faca, bem miudinha. Após temperada, enche-se a linguiça usando tripas naturais bovinas. Por fim, são feitos os furinhos.
No metro
Curiosa igualmente é a forma como a mestra negocia a iguaria. Um metro sai por R$ 45,00, calculado em palmos pela própria Zenilda. Se quiser pesar ou medir com trena, não vende. Tem de confiar na palavra dela, que começou a fazer linguiças aos 11 anos, seguindo os passos da mãe, Alexandrina. Aos 15, já a acompanhava numa barraca de feira. Continua com disposição até hoje, tanto que já confirmou presença no XII Encontro de Mestres do Mundo, que começa na próxima quarta-feira, dia 21, em Aquiraz.

Contudo, reclama do peso da idade, mas não para. Quase sempre, às 5 horas, já toma o rumo do Café Zenildim, a poucos quarteirões de casa. Ela continua comandando pessoalmente a fabricação das linguiças, auxiliada por duas ajudantes eventuais.
A filha Alexandrina também colabora, mas não deseja dar continuidade ao ofício, aliás, ninguém na família. Por isso, Zenilda, viúva e mãe de cinco filhos, ensina a quem se interessa, como deve fazer mesmo toda mestra que se preza.
“Eu tenho maior orgulho do mundo de ter recebido este título de mestra da cultura e das minhas linguiças. Já consegui muita coisa na vida com elas. Não sei se dizem que é boa pra me enganar, né? Mas eu acho que se não fosse boa, não comiam tanto quanto comem, né? Já mandei encomenda até pro governador (do Ceará), Camilo Santana”.
Na família de Rita de Cássia da Cunha, 84 anos, a história é promissora. Sem filhos, a mestra elegeu a sobrinha Tomázia Cunha, 67 anos, como sucessora. É ela quem executa a maior parte da produção, sempre sob o olhar exigente da tia: “Tomázia faz tudo bem direitinho, o povo sempre gosta, tem mais freguesia do que quando era eu”. E, assim, o doce, que chegou ao Brasil com a colonização portuguesa, segue vivo na Região Norte do Ceará.
Sobral é, conforme publicação da Casa do Capitão-Mor José de Xerez Furna Uchoa – Centro de Referência Cultural e Histórica de Sobral, “reconhecidamente uma das poucas cidades brasileiras que mantém esse saber preservado. Ressalta ainda a importância da dona Rita nesse cenário, sempre procurada por pesquisadores da culinária brasileira para conhecer a história do fartes.
Castanha de caju
Ao longo do tempo, o doce sofreu adaptações com matéria-prima regional. Na receita de Rita de Cássia, ela usa, em vez de nozes, a castanha de caju; no lugar de ovo, o gengibre. O maior segredo é produzi-lo da forma mais rústica possível, usando até pilão de madeira.
Há 40 anos, a mestra começou a fazer este docinho de massa bem fina com recheio feito com gengibre, leite de coco e castanha de caju. É tradicionalmente servido em festas como casamento e batizados. Acompanhado de café ou chá, é uma delícia.
“Aprendi a fazer só vendo minha madrinha Semiramis, uma doceira muito famosa aqui de Sobral. Mas nunca perguntei com quem ela aprendeu”, relembra a doceira que, antes disso, já tinha produzido chapéu de palha na adolescência e foi ajudante de costureira.
O novo ofício surgiu no aniversário de 100 anos da madrinha, na década de 1980, quando resolveu surpreendê-la fazendo pela primeira vez os fartes: “O meu doce foi aprovado por ela e pelos convidados”. Desde então, tornou-se a guardiã do fartes em Sobral. Na Casa do Capitão-Mor, ministrou oficinas promovidas pelo projeto “Doces Lembranças”.

Nos últimos tempos, não consegue prosseguir como desejava por conta da idade avançada. Mas festejou sua escolha como mestra da cultura: “Achei muito bom. Fiquei mais vista e pessoas conhecidas me telefonaram dando os parabéns”.
Títulos inéditos
Quem também comemora o fato de pela primeira vez ter mestras da gastronomia é o titular da Secretária da Cultura do Ceará, Fabiano Piuba. “A decisão não é da Secretaria. O edital é aberto para os mestres que detêm os seus saberes tradicionais e populares no campo das artes e da cultura. E nunca ninguém tinha apresentado uma proposta para gastronomia. De certa forma, a gente também estimulou para que esses mestres se inscrevessem também”.
Fabiano ressalta a importância de essas mestras surgirem em um contexto promissor na área em Fortaleza, com a Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco, em funcionamento, e a Escola de Hotelaria e Gastronomia Estação das Artes, a ser inaugurada em 2019. “Queremos fazer com que estes mestres sejam também professores nesses ambientes de educação formal”.

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