O voto e o crime: como facções criminosas tentam influenciar as Eleições 2024 em Sobral e no Ceará

Seis municípios cearenses, além de Fortaleza, estão no radar da Justiça Eleitoral por demandar mais atenção pela suposta presença ativa do crime organizado na disputa

A atuação das facções não se restringe ao tráfico de drogas, à disputa de territórios e a outros atos ilícitos, mas sua influência também alcança a corrida eleitoral. É nesse sentido que o acirramento das Eleições 2024 acende o alerta das autoridades e das forças de segurança do Estado, que tentam barrar o impacto do crime organizado no processo democrático.

O Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE) já mapeou, pelo menos, seis municípios cearenses em que a interferência das organizações criminosas na disputa demanda mais atenção. Segundo o órgão, a lista inclui Caucaia, Santa Quitéria e Sobral – cidades que, inclusive, tiveram casos concretos divulgados pela imprensa. Fortaleza é um caso à parte, em que a atuação para mapear e reprimir esse tipo de impacto começou antes mesmo do período eleitoral.

14% da população brasileira – mais de 23 milhões de pessoas – aponta perceber a presença de facções criminosas e grupos milicianos em seus bairros nos últimos 12 meses, de acordo com um levantamento do Datafolha. Esse percentual sobe para 17% na periferia de regiões metropolitanas e para 20% nas capitais.

Por questões de segurança, o TRE mantém o sigilo sobre o detalhamento das ações nesses locais e os nomes dos outros três municípios que compõem a relação. Isso significa, ainda, que não se pode afirmar em quais níveis de candidaturas – prefeito, vice-prefeito ou vereador – esse tipo de influência se dá.

Entretanto, a Justiça Eleitoral tem no radar cinco principais formas de influência do crime organizado no processo eleitoral, conforme a resolução que criou o Comitê de Enfrentamento à Influência da Criminalidade Organizada nas Eleições (CEICOE), no final de agosto:

  1. ameaças, intimidações, restrições da liberdade de ir e vir e a prática de crimes eleitorais ou comuns;
  2. atos de apoio ou desapoio a candidatos(as), partidos políticos, coligações ou federações;
  3. assistência material ou qualquer forma de financiamento de campanha em favor de candidatos(as), partidos políticos, coligações ou federações;
  4. participação de membros de organização criminosa ou facção criminosa na campanha eleitoral;
  5. participação de organizações criminosas, facções criminosas ou seus membros na lavagem de dinheiro relacionada a recursos arrecadados em campanhas eleitorais ou direcionados a campanhas eleitorais.

“Há algumas situações em que não há nenhum apoio ao candidato, mas a facção criminosa busca ver aquela oportunidade de querer cobrar algum valor para que seja realizada a campanha eleitoral naquele território. Então, não é nem um envolvimento do candidato em si, é mais uma tentativa de extorsão ou de receber recurso indevidamente em razão de ter o domínio, entre aspas, daquele território”, afirma o juiz auxiliar da presidência do TRE-CE, Tiago Dias.

CASOS CONCRETOS

O Ceará acumula alguns episódios que evidenciam a tentativa das organizações criminosas de influenciar as eleições. São casos já divulgados pelo Diário do Nordeste, a partir de informações da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS-CE), envolvendo ações de grupos criminosos suspeitos de interferir na disputa eleitoral, como ameaçar eleitores e candidatos, extorquir políticos e intimidar moradores.

Um grupo de 34 pessoas foi preso preventivamente pela Polícia, no dia 5 de setembro, suspeito de ameaçar eleitores, interferir em campanhas eleitorais e extorquir candidatos no estado, incluindo dois postulantes à Prefeitura de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza. Todos os suspeitos já tinham antecedentes criminais por crimes como tráfico de drogas, porte ilegal de arma de fogo e integrar organização criminosa.

Santa Quitéria também registrou um dos casos. Em 17 de setembro, uma operação da Polícia Civil e da Polícia Federal visou desarticular uma facção criminosa que ameaçou um candidato à Prefeitura da cidade e seus eleitores. Na oportunidade, 23 mandados de busca e apreensão foram cumpridos.

Outro exemplo vem de Sobral. No dia 2 de setembro, um homem foi preso por ameaçar de morte a ex-governadora do Ceará e candidata à Prefeitura de Sobral, Izolda Cela (PSB). De acordo com a SSPDS, o acusado tem 36 anos e integra uma organização criminosa.

“Em determinados territórios eles escolhem seu candidato, por aquele que eles fazem lobby e aquele que já “fechou” com eles. Então, eles fazem um determinado sistema de proteção a esse político, ao mesmo tempo eles barram outras candidaturas, outras possibilidades naquelas comunidades. Então, também já é muito presente isso, de localidades em que não pode ter movimentações de campanha de determinados candidatos. Isso, já é muito comum também e, nas eleições municipais, é quando isso fica mais visível”
Artur Pires

Sociólogo e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará (UFC)

O SALVE POLÍTICO

Atualmente, ao menos 72 facções atuam no Brasil tendo como base o sistema prisional, segundo a Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN). Entre elas, duas se destacam pela abrangência em todo o território brasileiro: o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV).

A presença no jogo político não é nova, mas elas têm encontrado outras formas de se infiltrar, para além das práticas mais comuns, como o apoio financeiro ou o “desapoio” a candidatos.

Pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP), Bruno Paes Manso explica que o CV tem se concentrado no controle territorial armado e na disputa de áreas, táticas comumente percebidas no Ceará e em outros estados do Nordeste.

“[O CV] reproduz de alguma forma esse modelo de você ter um líder territorial e de alguma maneira subjuga a população desses bairros a sua autoridade para que eles ganhem dinheiro com mais facilidade no crime. Então, isso produz um efeito local e cotidiano perverso e, ao mesmo tempo, acaba permitindo que ele facilite ou favoreça grupos políticos que tenham afinidade”, salienta.

No entanto, o crescimento econômico dessas organizações tem contribuído para uma maior atuação no sentido de influenciar as decisões do poder público, ou seja, o lobby. Essa estratégia tem sido utilizada, principalmente, pelo PCC, que tem uma atividade mais vinculada ao “controle” dos presídios e ao mercado internacional de drogas, aponta Manso.

Dentro dessa operação, há também o chamado “lobby empresarial”, que conta com o envolvimento de empresas para ajudá-los a lavar dinheiro e favorecer os seus interesses econômicos ligados ao mercado bilionário e ilegal, explica o especialista.

A partir dessa capacidade de gerar riqueza e estar dentro da economia, o crime organizado começa a ter mais ascendência na política, comenta Eduardo Manso, que também é jornalista e autor de livros, como ‘A República das Milícias: Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro’, vencedor do Prêmio Jabuti em 2021.

“Eles começaram a ter um discurso muito mais pragmático de que não são e nunca foram anti-sistema, mas aproveitam as brechas e querem meio que hackear o sistema. Eles querem entrar, mandar. Eles querem ser elite do sistema e como esse sistema exige dinheiro, que passa a ser associado a poder cada vez mais, eles passam a fazer parte. Eles estão integrando o sistema e compartilhando os valores de um sistema onde ter dinheiro significa ter poder”
Bruno Paes Manso

Pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP)

CONEXÃO PERIGOSA

O sociólogo Artur Pires relata que, quanto mais dinheiro esses grupos conseguem arrecadar, mais “capital simbólico” eles conseguem. Nesse sentido, há uma disputa crescente pelo poder político, que está ligada ao processo da democracia representativa.

O pesquisador do LEV, que tem estudado o tema no Doutorado em Sociologia, vê uma conexão sistemática entre três elementos sociais distintos: os grupos armados periféricos — chamados de facções —, parte da estrutura do estado e uma parte do empresariado. Nessa relação, que é organizada de forma hierárquica, quem tem mais poder, obtém maiores vantagens políticas e econômicas.

“São fenômenos que, à primeira vista, parecem estar separados completamente, em que um atua contra o outro. No caso, o estado atua para combater, obviamente existe isso, uma parte do estado atua para combater essas facções, mas tem outra parte do estado e do grande empresariado que está estritamente vinculada com as facções. Colhi muito dados em campo, mas também tem muitos dados que surgem na mídia, mostrando essas conexões e mostrando pessoas no Ministério Público, Tribunais de Justiça, políticos e grandes empresários envolvidos com os mercados de drogas, armas e outros mercados Ilegais”, enfatiza.

Essas conexões apresentam-se como desafios imediatos para a repressão à influência do crime organizado nas eleições. É nesse sentido que as ações sistemáticas e interorganizacionais ganham ainda mais relevância.

FonteDiário do Nordeste

FonteDiário do Nordeste