Por que sistema contra cheias não funcionou em Porto Alegre
Projetado para resistir a inundações de até seis metros, sistema sofreu com falta de cuidados ao longo de décadas. Com cenário de chuvas intensas mais frequentes, especialista defendem sua restauração.
No centro histórico de Porto Alegre, a inundação demora a recuar. Depois do pico da enchente atingir o recorde histórico de 5,3 metros em 5 de maio, algumas bombas entraram em operação, mas ainda há poucas áreas secas.
O aeroporto segue alagado. No Mercado Público, bancas que sofreram com a cheia de 1941, até então a pior da história, ainda estão submersas. A marca que indicava onde o nível da água chegou naquela época dentro do centro de abastecimento mais antigo do Brasil, fundado em 1869, foi superada em quase um metro pelas chuvas de 2024.
O prédio está a poucos metros do muro da Mauá, um paredão de concreto de seis metros – três deles enterrados no solo. Ele faz parte de um sistema de proteção construído para poupar a capital do Rio Grande do Sul de inundações de até seis metros. Mas no momento crucial, a estrutura fracassou.
“O sistema falhou miseravelmente”, lamenta Walter Collischonn, professor de engenharia ambiental e engenharia hídrica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Como hidrólogo gaúcho, esse fracasso me envergonha”, diz à DW.
Anel de proteção: engenharia contra inundações
O projeto foi feito pouco mais de duas décadas depois da grande enchente. A execução começou no início dos anos de 1970. A arquiteta Lígia Bergamaschi Botta ingressou na secretaria municipal de planejamento urbano em 1969 e diz que a obra veio na sequência de um aterramento, que “ganhou” mais área para a zona central.
“O prolongamento da faixa de terra se deu numa costa baixa, com plano de construção de parques, prédios comerciais e de serviços públicos”, diz Botta à DW.
O sistema combinava uma série de obras de infraestrutura que formariam um anel em torno da parte mais urbanizada à época e com perspectiva de expansão. Foram projetados 68 quilômetros de diques para barrar a água que transbordasse do rio Jacuí e do Guaíba. Novas avenidas e estradas surgiram sobre os diques.
No meio do caminho, estava a antiga avenida Mauá. A solução para fechar o anel de proteção foi construir um muro de pouco mais de dois metros de extensão todo de concreto para suportar a carga trazida por uma cheia. Ele tinha portões – para permitir a passagem de um lado para o outro – que seriam lacrados com chapas de metal para barrar a entrada da água em caso de alerta de inundação. O projeto previa ainda 20 casas de bomba para jogar para fora do anel de proteção água e esgoto em excesso que entrasse na cidade.
“As falhas se deram nos pontos de abertura do muro. A água passou por cima em alguns pontos. As comportas não foram bem vedadas. E no momento crucial não teve energia elétrica para bombear água de dentro para fora do sistema. Foi um descuido de décadas”, analisa Collischonn.
Botta lamenta o descaso e a falta de confiança na ciência. “Lamentavelmente, todo o sistema não teve uma manutenção adequada. As comportas já estavam bastante abauladas. Faltavam parafusos. Um dos portões veio abaixo com a força da água”, diz.
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Derrubar ou não?
Apesar das falhas, a ausência do muro da Mauá teria provocado ainda mais perdas, avalia Botta. Nos últimos anos, a estrutura projetada para funcionar como uma cortina de proteção era o centro de uma campanha para sua demolição. O atual prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, sugeriu em vários momentos a sua destruição alegando que o paredão atrapalhava a vista do Guaíba.
“Era um bombardeamento de grupos interessados em derrubar. Se ele fosse destruído, todo o sistema seria anulado”, adiciona Botta.
Natural de Lajeado, cidade no vale do rio Taquari atingida duramente pelas chuvas extremas recentes, Collishonn conviveu com enchentes na infância. O campo de esporte da escola era inundado com frequência, e a memória de pessoas que perdiam tudo segue viva. Foi nesta região onde mais pessoas morreram durante as cheias em 2024.
“No vale, não existe sistema de proteção. O nível da água lá pode subir 15 metros em 24 horas pela situação natural da geografia. Mas na área da região metropolitana de Porto Alegre, o nível não sobe tão rápido assim. Então dá tempo para se preparar”, pontua o pesquisador.
O sistema projetado na década de 1960 ainda é considerado atual por fontes ouvidas pela DW. “Existem outros muito mais complexos e caros. São soluções que exigem obras de grande vulto. Mas o nosso sistema funciona bem em países como Holanda”, analisa Botta.
Collishonn defende o reforço das estruturas de proteção e uma compreensão da sociedade sobre seu funcionamento. “No sul do Brasil, as estimativas são de que as cheias vão aumentar. O que está acontecendo nos últimos anos pode ser o cenário do século 21”, afirma com base num projeto em andamento entre a universidade e Agência Nacional de Águas que projeta as vazões máximas dos rios por influências das mudanças climáticas.
Questionada pela DW, a prefeitura de Porto Alegre não respondeu até o fechamento desta reportagem.
Como reconstruir no atual cenário
A engenharia, sozinha, não vai salvar as cidades dos impactos trazidos pelos eventos climáticos extremos. Segundo especialistas ouvidos pela DW, a gestão dos riscos e a honestidade dos governantes – sobre o que eles irão fazer de fato para proteger os habitantes – são primordiais.
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“Engenharia é muito importante, prevenção e educação também são muito importantes”, avalia Pedro Chafre, pesquisador do laboratório de hidrologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mencionando ainda mapeamento de áreas de risco e implantação de sistema de alerta.
“Tem que se reavaliar as estruturas que existem, entender se elas estão dimensionadas de maneira apropriada considerando as mudanças climáticas e os regimes de cheia já observados”, pontua Chaffre, referindo-se a pontes, aeroportos, subestações elétricas, estações de tratamento de água, esgoto e outras estruturas que mantêm cidades funcionando.
O roteiro para manter as cidades seguras, diz Botta, já é conhecido há tempos. “O planejamento urbano tem que ser levado a sério. Existem leis sobre áreas que não devem ser ocupadas. Mas as autoridades fazem vista grossa”, justifica.
Como exemplo, a arquiteta cita o caso de Eldorado do Sul, município que surgiu como assentamento irregular construído numa área vulnerável a cheias. Depois das chuvas extremas recentes, ele foi praticamente destruído.
Para Collischonn, enquanto todos tentam nomear os responsáveis, a culpa não é exclusiva de um governo, ou de outro. “É um descaso da nossa geração com legado que a geração passada, que tinha sofrido a pior enchente, nos deixou. Agora uns acusam os outros. Mas o fracasso é nosso como sociedade”, diz.
Fonte: G1